Mais de meia década após o assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, um crime ainda hoje sem solução, a única sobrevivente do atentado, ocorrido na noite de 14 de março de 2018, lança um livro documental sobre a trajetória política interrompida da vereadora carioca.

Ex-assessora de Marielle Franco, a jornalista Fernanda Chaves estava no carro alvejado por disparos de fuzil, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Em coautoria com a socióloga Priscilla Brito, que também trabalhou com a ex-vereadora, elas publicam a obra Marielle Franco, Nesse lugar da política: um mandato interrompido, cujo pré-lançamento ocorre nesta sexta-feira (29), em Brasília.

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O período destacado para compor o livro vai desde a campanha eleitoral, em 2016, quando Marielle foi eleita vereadora, até a noite do dia 14 de março de 2018, quando ela e Anderson foram mortos em uma emboscada logo após participarem de evento sobre ativismo e empreendedorismo para jovens negras, na Casa das Pretas, na Lapa.

“É uma cena brutal, um filme de terror [a lembrança do momento do crime], e a falta de justiça só aumenta essa dor. Mas eu vou continuar falando disso. No dia 14 de março de 2018, todos nós perdemos. Eu perdi uma amiga, uma chefe, uma comadre. Os cariocas perderam uma vereadora, as mulheres trabalhadoras periféricas negras, as mulheres lésbicas, todas perderam uma representante batalhadora e forte, uma mulher que estava ali por muitas mulheres e com muitas mulheres”, relata a jornalista ao falar sobre o crime.

Para Fernanda Chaves, tem momentos que são mais fáceis outros mais difíceis ao processar a cena do atentado na memória. “Não apenas por ser uma sobrevivente, mas por ser uma cidadã brasileira, eu preciso continuar exigindo a justiça. E aí, nesse sentido, eu tenho que continuar é falando desse dia, né? Falando desse dia, dessa noite de horror”, acrescenta.

Marielle vereadora

“Cria” da Comunidade da Maré, complexo de favelas no Rio de Janeiro, é nesse mesmo lugar que Marielle dá início à sua trajetória de defesa aos direitos humanos e entra para a história política e social do Brasil e do mundo, já que o crime teve uma repercussão mundial. O livro de Fernanda Chaves e Priscilla Brito traz ao mundo fatos que precedem o assassinato da vereadora. A extensa pesquisa foi conduzida pela psicóloga Ana Marcela Terra, também ex-assessora de Marielle, e reuniu vasto material biográfico, como registros fotográficos, textos e discursos. Toda a reunião do material é fruto de uma construção coletiva para documentar a trajetória de Marielle.

“Eu sentia muita necessidade, sobretudo quando dou entrevistas, de ter um lugar em que tivesse essa documentação mesmo organizada, da atuação de Marielle vereadora, de tudo que o mandato dela propôs, debateu e disputou dentro daquela Casa, porque são temas que seguem, até mais do que nunca, pertinentes na vida da sociedade. Muita gente me perguntava 'como é que eu faço pra achar todos os artigos de Marielle?'. O livro nasce dessa necessidade também”, disse Chaves. Mas a obra evita ser uma mera documentação dos principais destaques da campanha e do mandato de Marielle, e busca entrecortar essa memória com contextualização e relato de bastidores sobre como funcionava o mandato, com uma equipe repleta de mulheres e pautas as mais diversas.

“O livro faz parte de um projeto maior de resgate de memória do PSOL, dessa gestão atual da Fundação Lauro Campos, ligada ao partido, que investiu muito na construção da memória do partido e, obviamente, a Marielle é uma figura importantíssima no partido. A gente também quis mostrar essa Marielle como mulher de partido”.

Ainda sem data para o lançamento oficial em livrarias, a obra sobre Marielle será inicialmente distribuída para a militância do PSOL durante o congresso do partido, este fim de semana, em Brasília, numa tiragem limitada. A expectativa é que parcerias com editoras viabilizem uma tiragem maior ao longo do próximo período.

Investigações

Em julho, uma operação deflagrada pela Polícia Federal (PF) prendeu o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, conhecido como Suel, no Rio de Janeiro, acusado de obstruir as investigações sobre a execução de Marielle e de Anderson. A prisão foi decorrência de uma delação premiada de Élcio de Queiroz, que confessou ter participado do crime, e que também revelou que o ex-policial militar Ronnie Lessa foi mesmo o autor dos disparos. Apesar do envolvimento dos três executores ser agora conhecido pela investigação, nunca se chegou aos mandantes do crime.

“A gente tem hoje em dia um outro patamar da situação com relação à investigação desse caso, um tratamento mais acertado. Para solucionar um crime político é preciso ter vontade política. Isso traz um conforto maior agora”, disse Fernanda sobre o avanço das investigações em 2023. Apesar disso, e mesmo após a imensa repercussão do caso, a vida dos defensores de direitos humanos no Brasil segue sob risco, aponta a jornalista.

“É um quadro preocupante é um quadro preocupante há muitos anos, né? O Brasil vinha dando passos importantes na promoção e proteção dos direitos humanos e seus defensores, mas toda essa política foi desmontada no governo Bolsonaro, com a paralisação e extinção de conselhos e de políticas públicas. Mesmo que ele tenha saído de cena e tenha assumido um governo que tem compromisso com direitos humanos, é uma agenda que precisa ser reconstruída”.