Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que todas as formas de violência contra mulheres brasileiras cresceram no último ano, com 18,6 milhões de vítimas. Foram mais de 50 mil casos por dia no País. Em quase metade deles, os alvos das agressões não tomaram nenhuma atitude após o ocorrido.

O estudo revela ainda que uma a cada três mulheres brasileiras (33,4%) com mais de 16 anos já sofreu violência física e/ou sexual de parceiros ou ex-parceiros ao longo da vida, o equivalente a 21,5 milhões de vítimas. O índice é maior que a média global, de 27%, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O Estadão ouviu o relato de uma mulher que sofreu violência física, psicológica e sexual do agora ex-marido por um período de 16 anos. A vítima, que terá o nome preservado, hoje tem 42 anos e é moradora da zona sul de São Paulo. Leia o depoimento completo:

“Comecei a sofrer violência no começo do meu casamento, em 2003. No início, a gente acha que não é bem uma violência, que é normal. Pensa: ‘Aconteceu porque a pessoa estava bêbada, não estava em um dia normal. Amanhã vai estar melhor’. Mas foi se agravando, principalmente quando fiquei grávida. Fui agredida na gravidez. Achei que ia perder minha filha, fui até para o hospital.

Depois, a gente acha que vai voltar ao normal de novo, acha que é bobagem, que a pessoa estava nervosa. Mas não é uma bobagem, não acaba nunca. Sofri violência por 16 anos, de 2003 até 2019. Piorou ainda mais quando minha filha nasceu, em 2006.

Quando cheguei em casa da maternidade, comecei a ser agredida já ali mesmo, só porque fui apresentar minha menina para a cachorrinha. Falei que era só uma apresentação para que a cachorra não estranhasse o cheiro da criança, mas a pessoa já começou a agredir.

Um dia minha filha estava chorando muito, ele me trancou do lado de fora da casa e a deixou chorando dentro de casa. A menina estava com fome, e eu do lado de fora, ainda com os pontos da cesariana. Entrei em desespero batendo na porta para entrar. Ele abriu para não ouvir mais a menina chorando.

Eu tinha que ficar longe dele para ele não ouvir ela chorando. Foi só se agravando. Às vezes, melhorava um pouco e a gente falava ‘agora deu certo’. A gente sempre acha que vai mudar a pessoa, mas tem violência psicológica, também. A gente não consegue entender o que está acontecendo.

Ele falava ‘você é burra, ignorante, trouxa, baiana, nordestina’, todo tipo de xingamento. Violência sexual, também sofri. Por ser casada, ele achava que podia fazer o que quisesse quando eu estava dormindo. Isso aconteceu pelo menos três vezes. Violência física e psicológica foram inúmeras, não consigo nem contar.

Eu amamentando e ele ‘quebrando’ minha cabeça na parede. Quando minha filha tinha seis meses, teve uma vez que ele saiu para beber com um amigo. Quando voltou, estava muito bêbado, e eu estava amamentando minha menina no quarto. Ele entrou no quarto, e só porque eu estava ali amamentando se estressou.

Então, me encurralou no cantinho da parede, começou a dar cabeçada na minha cabeça, deu uma cabeçada no meu olho. Começou a bater minha cabeça contra a parede. Eu estava amamentando antes, e a menina chorando, ela também sentia a agressão. Ele me bateu, me deixou trancada no quarto e foi fazer churrasco com o amigo. Como se nada tivesse acontecido.

Essa foi a primeira vez que comecei a pensar em pedir ajuda, quase fiquei cega. Minha filha já estava crescendo, e eu pensei: ‘Vou acabar morrendo’. Pensei na minha filha. Então fui na delegacia. Mas não dei continuidade, depois até arrependi de ter ido. Era 2007. Pensei que quando chegasse a intimação ele ficaria mais nervoso ainda.

Eu tinha medo de ir na delegacia, porque eu não tinha família aqui. Pensava que era ruim com ele, mas pior sem ele. Quando eu o conheci, trabalhava em salão. Mas ele não deixou, falou que atendia muita gente. Na gravidez, parei de trabalhar, para não arrumar confusão. Depois comecei a trabalhar junto com ele.

Minha filha foi crescendo e a violência se esticou até ela. Além de me agredir, ele agredia a menina também. Aí a coisa já foi ficando mais séria. Ele dava cabeçada, soco, tapa, já chegou a rasgar minha roupa no meio da rua. Tinha que estar tudo do jeito dele, tinha que ser agradado sempre. Sem motivo, ele já começava. Então tomei uma decisão mais drástica quando ele começou a agredir minha filha. Ela tinha de 12 para 13 anos.

Família e amigos ficaram sabendo da violência só nos últimos anos. Eu tinha medo de contar, e também eles estavam longe. Entrei em depressão, tomo remédios. Voltei para a delegacia algumas vezes. Até conseguir denunciar. Corri atrás e consegui uma medida protetiva tanto para mim quanto para minha filha. A gente se divorciou em 2019. Continuo morando com minha filha na mesma casa. Ele saiu, por decisão judicial.

Entre 2020 e 2021, entrei em contato com o Bem Querer Mulher (instituto que ajuda no encaminhamento de mulheres vítimas de violência). Recomendaram a casa enquanto eu estava no processo de divórcio, dizendo que eu precisava de ajuda psicológica. No divórcio, descobri que estava sofrendo violência patrimonial, que eu nem sabia o que era.

Agora, olhar para trás tem sido um aprendizado, e tento ajudar outras pessoas. Se lá atrás alguém tivesse me ajudado, falado comigo, se esse tema tivesse o alcance que tem hoje, talvez eu não teria ficado 16 anos em uma violência, achando que era normal.

Hoje estou tentando me reconhecer, porque minha identidade foi roubada por 16 anos. Eu queria ter estudado, feito Psicologia. Fui proibida de fazer isso. Sobrevivo com minha filha pois tenho Bolsa Família e ela recebe pensão dele. Minha filha está com 16 anos. No começo, ela ficou bem abalada, mas hoje está melhor. Passa o dia todo na escola, não fica parada. O que eu quero para ela é isso, que estude.

A violência te tira o direito de ir e vir, tira o seu dinheiro, você fica sem o que fazer. Eu tinha medo, e eu não tinha para onde ir. A condição financeira é o que mais prejudica as mulheres. A pensão só foi paga por determinação judicial. No começo, ele começou a não querer pagar, mas, quando viu que poderia ir preso, agora ele paga. O divórcio já saiu, agora só falta a divisão de bens.

Depois do divórcio, ele ainda foi lá em casa, tentou me ameaçar, tentou me amedrontar. Quebrou meu portão, falou que ia botar minhas coisas na rua. Foi aí que falei que não ia mexer mais com meu psicológico. Chamei a polícia, fiz vários boletins de ocorrência. Mas ele tentou várias vezes. Quando a polícia ia embora, voltava de novo. Chegou em casa com três homens quebrando meu portão às 7h da manhã uma vez.

Aí falei: ‘Não, não vou deixar ele meter medo em mim’. Me mantenho firme, e todas as vezes que ele aparece, eu chamo a polícia. Ele só parou quando viu que podia realmente ir preso. Tenho a medida protetiva desde 2020, para mim e para minha filha. A última vez que foi, foi no fim do ano passado. Quando ele viu que eu tinha perdido o medo, parou de ir.”