Em meio ao avanço das milícias e da histórica letalidade policial nas favelas do Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu nesta quinta-feira, 3, um conjunto de diretrizes a serem seguidas na Segurança Pública do Estado. A decisão do colegiado impõe ao atual governador, Cláudio Castro (PSC), e a seus sucessores protocolos de proteção dos direitos humanos em operações nas comunidades fluminenses.

Entre os principais pontos do julgamento está a elaboração de um plano para redução das mortes por ação da polícia; a instalação de câmeras e GPS nas viaturas e fardas; e a ‘proporcionalidade e a excepcionalidade do uso da força’. Mais cedo, uma operação da Polícia Militar no Parque Floresta, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, deixou ao menos seis mortos.

Os ministros analisaram em duas sessões o embargo apresentado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que cobrou da Corte esclarecimentos sobre a amplitude da decisão que proibiu a realização de operações policiais – sem justificativa prévia ao Ministério Público – nas periferias fluminenses durante a pandemia de covid-19.

No primeiro julgamento do ano após retorno dos trabalhos no Poder Judiciário, os ministros avaliaram os onze itens propostos pelo relator da ação, ministro Edson Fachin, para corrigir o que foi considerado pelo STF como um “estado de coisas inconstitucional” gerado pela atuação das forças de segurança no Rio. A Corte acolheu, por unanimidade, quatro sugestões contidas no voto de Fachin.

“O momento é, efetivamente, de o Supremo Tribunal Federal, diante desse estado de coisas inconstitucional, enfrentar a questão à luz de sua concretude e estabelecer essas diretrizes”, defendeu o ministro Luiz Fux, presidente da Corte. “Os moradores das regiões carentes não podem ter suas vidas, propriedades e liberdade constantemente ofendidas e ameaçadas por uma política que não tenha por norte o respeito aos direitos humanos”, sustentou em outro momento.

Na mesma linha, a ministra Cármen Lúcia defendeu que o tribunal ‘não poderia desertar ou renunciar ao seu dever de julgar’ o tema.

“Esse processo trata de direitos humanos no ponto que é mais nevrálgico e é o ponto que se refere ao respeito ou ao desrespeito, a segurança ou a insegurança, produzida por órgãos estatais em detrimento de direitos humanos”, defendeu a ministra.

O ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, classificou as regras impostas pelo tribunal como um ‘avanço civilizatório’.

Veja os pontos aprovados pelo STF:

– Elaboração de um plano para reduzir a letalidade policial e controlar violações de direitos humanos pelas forças de segurança no prazo de 90 dias;

– Excepcionalidade na realização de operações policiais até o plano seja apresentado. No intervalo, as incursões devem considerar as diretrizes fixadas pelo ONU para uso da força e das armas de fogo por agentes policiais;

– Acompanhamento da política de Segurança pelo Observatório de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça;

– Progressividade no uso de meios letais, cabendo às forças de segurança examinarem, diante das situações concretas, a proporcionalidade e a excepcionalidade do uso da força;

– Prioridade absoluta nas investigações de incidentes que tenham como vítimas crianças e adolescentes;

– Disponibilização de ambulâncias em operações policiais previamente planejadas em que haja a possibilidade de confrontos armados;

– Mandados domiciliares devem ser cumpridos apenas durante o dia;

– Instalação de equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes em 180 dias.

– Os itens de consenso absoluto entre os ministros tratam, respectivamente, de obrigar o governo do Rio a produzir em 90 dias um plano de redução da letalidade e controle das violações de direitos humanos; delegar a um Observatório Judicial o monitoramento das ações policiais no Estado; tornar “prioridade absoluta” as investigações de ocorrências envolvendo crianças e adolescente; e, por fim, exigir a disponibilização de ambulâncias durante as incursões nas favelas.

Durante o julgamento nesta quinta, após embates com André Mendonça e Kassio Nunes Marques na primeira sessão de votação, o relator decidiu reformar o voto para se alinhar a considerações feitas pelo ministro Alexandre de Moraes. Fachin ajustou um dos pontos que gerou mais resistência entre Moraes, Mendonça e Nunes Marques: o que dava ao Ministério Público a prerrogativa de analisar, a posteriori, se o uso de meios letais nas operações foi necessário e “proporcional”. O trecho do voto foi ajustado para esclarecer que cabe às forças de segurança “examinarem, diante das situações concretas, a proporcionalidade e a excepcionalidade do uso da força”.

Um dos pontos previstos no voto de Fachin, que acabou rejeitado por maioria, determinava a suspensão do sigilo de todos os protocolos de atuação policial no Estado. A avaliação dos ministros foi que a publicização poderia comprometer investigações e operações.

Ao Estadão, o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Público do Rio de Janeiro, avalia que o balanço do julgamento foi positivo.

“Foi uma vitória importante. Agora é necessário um acompanhamento e um monitoramento desse plano pela sociedade civil. Esperamos que ele seja elaborado de forma participativa e transparente”, defende. “A gente ainda não sabe como o Estado vai cumprir essa determinação. A elaboração de um plano de letalidade policial já foi objeto da sentença do caso Favela Nova Brasília, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2017, mas o Estado até hoje não apresentou o documento.”

Outro ponto comemorado pela Defensoria do Rio é a obrigatoriedade de câmaras nas fardas e frotas. O governo do Rio já previa a instalação dos equipamentos, mas de maneira gradual e a começar por batalhões na zona sul.

“Vai ser muito importante no contexto de operações policiais, dentro de veículos blindados, de aeronaves, também no bojo do programa Cidade Presente. em São Paulo, os resultados iniciais tem sido muito positivos”, avalia Lozoya.