O Plenário do Supremo Tribunal Federal já tem maioria para derrubar o decreto do presidente Jair Bolsonaro que esvaziou o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão que visa prevenir casos de tortura e de outros tratamentos ou penas degradantes. Seis ministros já se manifestaram no sentido de acompanhar o relator do caso, Dias Toffoli, no sentido invalidar o texto assinado pelo chefe do Executivo em razão de ele fragilizar a política pública de prevenção e combate à tortura no Brasil.

“Não é dado ao Chefe do Poder Executivo, sob o pretexto de exercer função meramente regulamentar, desmontar política pública instituída no intuito de dar cumprimento ao texto constitucional e prevista em compromisso internacional assumido pelo Brasil. Assim, por ter como efeito prático o esvaziamento do MNPCT, a edição do Decreto nº 9.831/2019 configura um abuso do poder regulamentar, e, consequentemente, também uma contrariedade à separação entre os poderes, pois acaba por condenar à absoluta ineficácia uma política pública prevista em lei”, ressaltou Toffoli em seu voto.

O tema é discutido no Plenário Virtual, em julgamento que teve início no último dia 18, e está previsto para terminar nesta sexta-FEIRA, 25. Os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes e as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia votaram com Toffoli. Restam se pronunciar os ministros Kassio Nunes Marques, Gilmar Mendes e André Mendonça.

A ação que levou o caso ao STF foi impetrada em agosto de 2019 pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, antecessora de Augusto Aras. A então chefe do Ministério Público Federal questionou decreto editado por Bolsonaro em junho do mesmo ano, para remanejar onze cargos de perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura para o Ministério da Economia, exonerando os respectivos ocupantes, e ainda determinar que a participação no órgão seria considerada “prestação de serviço público relevante, não remunerada”.

Na época, Dodge argumentou que o decreto feria princípios fundamentais como o da dignidade humana, o da vedação à tortura e o da legalidade, destacando que a manutenção dos cargos ocupados pelos peritos é “essencial ao funcionamento profissional, estável e imparcial do órgão que, por sua vez, é indispensável ao combate à tortura e demais tratamentos degradantes ou desumanos em ambientes de detenção e custódia coletiva de pessoas”.

Em 2021, sob a gestão de Augusto Aras, a PGR chegou a apresentar parecer divergente sobre o caso, argumentando que o decreto questionado por Dodge já havia sido revogado por um outro texto editado por Bolsonaro.

Toffoli, no entanto, considerou que a revogação em questão se deu no contexto de sucessivas reestruturações administrativas no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sem que, tenha havido o retorno dos onze cargos em comissão para a pasta e a sua destinação aos peritos do MNPCT.

Os peritos permanecem nos cargos em razão de uma liminar deferida pela Justiça Federal no Rio de Janeiro no âmbito de ação civil pública. Toffoli ponderou que a decisão tem “natureza precária” e ressaltou que, apesar de ela ter garantido o direito dos peritos atualmente em exercício, não resolveu a questão quanto às contratações subsequentes, ou seja, quanto ao futuro do MNPTC.

Para o relator, o decreto editado por Bolsonaro “tem o condão de fragilizar o combate à tortura no País” ao remanejar para outro órgão os 11 cargos em comissão ora destinados aos peritos do MNPCT, determinar a exoneração dos ocupantes e transformar a atividade em serviço público não remunerado. Toffoli viu “violação especialmente grave, diante do potencial desmonte de órgão cuja competência é a prevenção e o combate à tortura”.

“Tais medidas esvaziam a estrutura de pessoal técnico do MNPCT, valendo destacar que a transformação da atividade em serviço público não remunerado impossibilita que o trabalho seja feito com dedicação integral e desestimula profissionais especializados a integrarem o corpo técnico do órgão”, ressaltou.

O ministro também frisou que o texto colocou o País em uma situação de descumprimento de obrigações assumidas perante órgãos internacionais. Toffoli lembrou que organismos internacionais, entidades da sociedade civil, associações representantes de carreiras jurídicas e órgãos públicos manifestaram “rechaço em uníssimo” ao decreto de Bolsonaro – entre elas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Para o ministro, o decreto de Bolsonaro “viola frontalmente a Constituição Federal” ao ferir o preceito fundamental segundo o qual “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” . Segundo Toffoli, o texto editado pelo chefe do Executivo consiste em “ação do Poder Público que obstaculiza o trabalho de inspeção de estabelecimentos de privação de liberdade”.

“Manter um adequado quadro de peritos do MNPCT, todos ocupantes de cargos em comissão e devidamente remunerados, significa equipar adequadamente órgão e, em última análise, a Administração Pública Federal, com agentes públicos capazes de levar à cabo a finalidade última de prevenir e combater a tortura no Brasil. Não se trata de uma escolha das autoridades que ocupam, em caráter eventual, os mais altos cargos da República, mas sim, de uma política de Estado, que transcende ideologias e visões de mundo, pois retira diretamente da Constituição Federal o fundamento de sua existência”, ressaltou.

O relator indicou que o MNPCT é composto por peritos “com notório conhecimento e formação de nível superior, atuação e experiência na área de prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. Nessa linha, destacou a “natureza e a relevância do trabalho” de tais servidores, além do “grau de responsabilidade e os riscos associados”.

Em seu voto, o ministro ainda fez um apelo ao Congresso Nacional para que sejam estabelecidas em lei as condições necessárias para o exercício das competências do MNPCT “com a segurança jurídica e independência com que se comprometeu o Estado brasileiro a garantir”. Além disso, advertiu que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos “tem a obrigação legal de fornecer o devido suporte administrativo, financeiro e logístico ao MNPCT, de forma a promover o pleno funcionamento do órgão”.