Professor de bioética do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, Valdir Gonzalez Paixão diz que o debate sobre o suicídio assistido inevitavelmente chegará ao Brasil. O tema voltou às manchetes esta semana com a morte do cineasta francês Jean-Luc Godard, de 91 anos. Ele não sofria de nenhuma doença, mas optou por deixar a vida com auxílio de um profissional. Há quatro meses, o debate já tinha ganhado força com uma mensagem de despedida nas redes sociais do ator francês Alain Delon, aos 86 anos, um defensor do procedimento.

O suicídio assistido é legal em países como Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Espanha, Canadá, alguns Estados dos Estados Unidos. Mas só pode ser aplicado em casos de doenças terminais e incuráveis, que gerem sofrimento insuportável ao paciente. Na Suíça, onde morreu Godard, essas condições não são necessariamente pré-requisitos. Lá, a interpretação de “sofrimento insuportável” é mais ampla.

Em maio, o debate chegou mais perto do Brasil. A Justiça da Colômbia despenalizou o suicídio assistido por médicos e, com isso, se tornou o primeiro país da América Latina onde os médicos poderão ajudar um paciente a morrer sem serem processados pela Justiça. No Peru, em julho, a Justiça autorizou a eutanásia de uma mulher que sofria com uma doença degenerativa havia mais de três décadas.

No Brasil, tanto o suicídio assistido quanto a eutanásia são considerados crimes, o que se soma à condenação moral promovida por religiosos à prática. Eutanásia é quando um médico administra um remédio letal ao paciente. No Brasil, é considerada homicídio simples. Já o suicídio assistido ocorre quando o próprio paciente toma uma droga letal com a orientação de um profissional de saúde. Pela lei brasileira, é um crime contra a vida.

“É uma questão inevitável de a gente discutir”, afirmou Paixão. “Não implica concordar ou não, mas abrir uma discussão sobre um tema que está ai. É uma questão polêmica, mas que deve ser vista de forma aberta, sincera, crítica e reflexiva a partir de sua complexidade.”

A seguir, a entrevista de Paixão ao Estadão:

Para além da morte de Jean-Luc Godard, Colômbia e Peru descriminalizaram mortes assistidas nos últimos meses. Dois países da América Latina. Acha que em algum momento teremos que entrar nessa discussão também?

Não tenho dúvida a respeito disso. É uma questão inevitável de a gente discutir. Há muito preconceito; até hoje é um tabu grande falar sobre a morte, que faz parte do ciclo da vida. E este é um tema emergente, que vem à tona agora. A bioética prima pelo debate de ideias, pela discussão de temas pertinentes ao cidadão. Não implica concordar ou não, mas abrir discussão sobre um tema que está ai. É uma questão polêmica, mas que deve ser vista de forma aberta, sincera, crítica e reflexiva, a partir de sua complexidade. Já fizemos isso outras vezes, no passado, sobretudo com os avanços das tecnologias aplicadas à biomédica, como a barriga de aluguel. Essas discussões são inevitáveis. Num primeiro momento, o importante é trazer a discussão de forma crítica, reflexiva e plural, envolver as pessoas na discussão.

Acredita que a religião tem voz nesse debate?

Primeiramente, temos de fazer uma distinção do que é institucional do que é religioso. Mas acho que a religião tem algo a dizer, sim, nessa discussão, como já fez em várias outras questões da bioética. Isso não quer dizer assumir postura dogmática ou catequética. Somos um país pautado na democracia e no Estado laico. O tema deve ser abordado sob essa perspectiva, de pluralidade de ideias, respeito às diferenças. Mas acredito sim que a religião tem algo a dizer e a contribuir.

Do ponto de vista legal, esse debate ainda está muito atrasado no País…

Há um longo debate pela frente. Quando falamos em bioética, e lido muito com isso no dia a dia, sobretudo com tecnologias aplicadas às áreas de pesquisa biomédica, existe uma alienação muito grande. Parece que transferimos as reflexões a uma dada autoridade. Nas escolas de educação básica, por exemplo, não existe discussão sobre pesquisas com células-tronco e fertilização in vitro, por exemplo. O desconhecimento é muito grande. Há um longo caminho a ser percorrido. A própria bioética, como campo de conhecimento, é muito recente, da década de 1970. Mas os debates estão acontecendo e há um reconhecimento de que os temas devem ser discutidos. Eles fazem parte do cotidiano de todos e não podemos delegar a ninguém, é a nossa vida envolvida.