Titular da reforma agrária defende a revisão dos critérios de produtividade no campo, mesmo que isso contrarie

os agricultoresO atual ministro do Desenvolvimento Agrário, o gaúcho Guilherme Cassel, 50 anos, começou sua militância fundiária em 1998 com seu antecessor Miguel Rosseto, então vice-governador do Estado do Rio Grande do Sul. Engenheiro civil de formação e pós-graduado em recursos humanos, ele defende os movimentos sociais e nega que o Incra tenha sido aparelhado pelo MST. No entanto, considera natural haver pessoas ligadas às lutas agrárias ocupando altos cargos da entidade. A seguir, conheça um pouco mais do homem que comanda a reforma agrária no País em entrevista exclusiva à DINHEIRO RURAL.

DINHEIRO RURAL – Como o sr. avalia hoje o clima no campo no que diz respeito aos conflitos agrários em curso?

GUILHERME CASSEL – Os números são um bom ponto de partida. O Brasil tem hoje 800 mil assentados. Desses, 381 mil foram assentados nos últimos quatro anos. Há problemas em algumas regiões, que serão tratados com o devido cuidado, mas devemos manter o mesmo ritmo de assentamentos, para que seja possível alcançar uma outra estrutura agrária no País, e ao mesmo tempo é preciso centrar esforços para a qualificação dessas áreas.

DR – Há um déficit do estoque de terra para reforma agrária no País?

GC – Essa realidade não é igual para todas as regiões. É verdade que há um estoque menor no sul do País, que já possui uma estrutura de terra democratizada, composta por minifúndios. Em Santa Catarina, Paraná e na Serra Gaúcha, já existe uma estrutura agrária mais bem formada. Mas se você subir um pouco, para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste, há ainda um estoque bastante confortável, entre terras públicas, a serem compradas ou para desapropriação. Não há um número de hectares disponíveis, depende um pouco do tipo de ocupação que está sendo feito. A União ainda possui um estoque de terras amplo, principalmente na Amazônia Legal. Há terras ocupadas de forma ilegal e, desde 2003, temos desalojado esses grileiros.

DR – Havendo essas terras, como justificar a pressão dos movimentos sociais que procuram sempre as áreas mais produtivas?

GC – Acho que isso não pode ser visto como regra geral. E não podemos também incorporar um preconceito de que terra para reforma agrária é terra ruim.

Para reforma agrária a terra tem de ser boa e fértil. Portanto, é justo que os movimentos sociais reivindiquem as melhores terras. Não há problema nisso. O Brasil ainda tem uma das maiores concentrações fundiárias do mundo, maior até do que a nossa concentração de renda. Eu defendo que a reforma agrária deva ser feita em terras boas e férteis.

DR – Não se corre o risco de haver um pior aproveitamento da terra desapropriada até porque os assentados não têm capacidade de investimento?

GC – A obrigação de quem é proprietário de terra, seja assentado ou não, é produzir alimento, preservar o meio ambiente e ter relações trabalhistas adequadas. Não existe hierarquia entre esses pilares.

Estamos fazendo a avaliação dos imóveis levando em conta esses três critérios juntos. Todos os estudos realizados até hoje sobre produtividade dos assentamentos mostram que eles acompanham, no mínimo, a média de produtividade da região. A afirmação de que os assentamentos são improdutivos não passa de argumento meramente ideológico e não tem embasamento técnico nenhum. A questão da falta de capacidade de investimento, porém, é verdadeira.

Quando se desapropria uma determinada área de um produtor rural, o interesse e obrigação do Estado é estabelecer ali um padrão de produção superior e um ganho imediato nisso.

DR – A avaliação de produtividade para desapropriação da terra não pode obrigar o agricultor brasileiro a sofrer prejuízos por causa das variações que o mercado pode oferecer?

GC – Produtividade é um interesse da sociedade brasileira. No século XXI, todos os países que pretendem manter um ritmo de desenvolvimento sustentável, do ponto de vista social e econômico, protegem a produtividade de suas terras e buscam uma utilização social e racional. Terra não pode ser um ativo de especulação financeira. Isso é costume das oligarquias rurais do século passado. A terra é um bem do País, um bem finito e a função principal dela é a produção de alimentos. E a aferição da produtividade segue primeiramente esse objetivo. Terras que não cumprirem sua função social com certeza serão destinadas à reforma agrária.

Titular da reforma agrária defende a revisão dos critérios de produtividade no campo, mesmo que isso contrarie

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DR – Mas numa democracia é o mercado que determina quanto e como se produz…

GC – A legislação é bem clara no sentido de que em casos de crises, seja de preços, seja de produção, esses índices devem ser excluídos do cálculo de produtividade. O que determina a produtividade média ou mínima numa região é o padrão tecnológico, a produção das propriedades no entorno, o levantamento científico do que está se produzindo. Para a formulação desses índices são levadas em consideração séries históricas, e não apenas um momento. Os picos negativos de produtividade são retirados justamente porque um problema de preço pode ocasionar uma depressão da produtividade. Essa fórmula se aplica apenas às grandes extensões de terra, ou seja, acima de 15 módulos rurais, que variam de região para região. São, no máximo, 100 mil imóveis no País.

DR – Então como explicar o caso da Fazenda Coqueiros, no Rio Grande do Sul, que é altamente produtiva, ambientalmente correta e mesmo assim o Incra local pediu a desapropriação das terras?

GC – A Fazenda Coqueiros é uma situação específica e não há solução fácil para aquele problema. Ela ocupa 26% da área total de um município (Carazinho). De fato, na última avaliação, as terras se mostraram produtivas, mas há uma demanda de mais de 30 prefeitos daquela região que pediram a desapropriação daquela fazenda porque consideram que a extensão das terras (sete mil hectares) impede o desenvolvimento econômico da região. Esse caso deve ser tratado rigorosamente dentro da lei e estamos analisando o caso. Tentamos todos os caminhos de negociação de compra e venda, mas os proprietários não querem vender, o que é um direito deles. O conflito existe, está lá, estamos tentando uma solução mediada, mas não será fácil.

DR – Como, então, uma terra invadida oito vezes pode ter em curso um processo de desapropriação, o que contraria totalmente a legislação?

GC – Primeiro temos de estabelecer clareza sobre a legislação, que diz o seguinte: são passíveis de desapropriação os imóveis improdutivos e que não cumprem a função social, seja do ponto de vista trabalhista ou ambiental, ou seja, o bem-estar da sociedade. É um critério mais amplo que a produtividade. Nós cumprimos a legislação e não é um processo comum de desapropriação. O conteúdo é outro.

DR – Mas a lei não é a mesma para todos, independentemente do conteúdo local?

GC – Se houver algum impedimento legal sobre isso, nós vamos sustar o processo, sem nenhum problema. O País tem instituições que funcionam. O Poder Judiciário funciona e o proprietário terá todo o direito de recorrer. Podemos dizer: “A fazenda foi invadida, então não vamos fazer nada.” Mas isso não resolve o conflito, não supera os problemas. Desde que estou aqui, nunca tivemos um processo que não tenha ido adiante por causa de um encaminhamento errado da nossa parte, mas, se isso acontecer no caso da Fazenda Coqueiros, todos poderão se manifestar. Esse é um tema que tem de ser abordado sem conceitos ideológicos. O tema deve ser abordado do ponto de vista do desenvolvimento e sem prejudicar direitos dos proprietários. Por isso eu disse que não existe solução fácil para um conflito complexo como aquele. Existe, de fato, uma vontade do proprietário de não se desfazer daquela área. A fazenda ocupa, objetivamente, 26% do município e existe um conjunto de comunidades que se sentem prejudicadas com aquela estrutura fundiária, que emperra a região.

DR – Para o MDA, quais as áreas mais suscetíveis para desapropriação no País?

GC – A nossa prioridade está nos acampamentos, que estão sempre próximos de áreas emblemáticas. Nosso planejamento operacional tem uma divisão por Estados para assentamentos. Nesse critério, os trabalhadores acampados são a nossa prioridade.

“Movimentos sociais são legítimos e não se pode ter preconceito contra eles”

DR – Mas com esse critério corre-se o risco de a agenda política se colocar à frente dos interesses reais da sociedade…

GC – Esse é um cuidado que temos de ter. Considero legítimas as pressões dos movimentos sociais, mas também entendo que essas pressões não podem substituir a capacidade de planejamento do Estado. O programa de reforma agrária tem de seguir um planejamento feito pelo Estado, que não pode se deixar levar pelas pressões. O Estado tem de levar em conta as pressões, mas não pode se deixar levar, ser refém, ou andar a reboque dessas pressões, que realmente acontecem.

DR – Mas ainda assim afirma-se que o Incra está totalmente aparelhado pelo MST, o que faz o ambiente agrário ficar mais tenso…

GC – Essa é uma afirmação que não encontra nenhum respaldo na realidade. Os superintendentes do Incra em todos os Estados, evidentemente, são pessoas que têm uma história ou estudo vinculado à questão agrária.

Isso também é verdadeiro no Ministério do Trabalho e Emprego, na Saúde, Educação. Ninguém questiona que um sindicalista seja ministro do Trabalho. O Roberto Rodrigues, que é ruralista, foi Ministro da Agricultura e isso parece natural. Mas quando se trata de uma pessoa como Holf Hackbart, presidente do Incra, que tem uma longa história na reforma agrária, dizem que não é legítimo. Isso não é razoável e me parece preconceito contra a reforma agrária.

DR – Como está a sua relação com o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Reinhold Stephanes, no que tange aos trabalhos comuns?

GC – Muito boa. Tenho no ministro Stephanes um parceiro. Tínhamos um bom relacionamento já na época do Roberto Rodrigues. Ele é novo no cargo, mas acredito que trará bons avanços para a sua pasta.