Atenção: matéria exclusiva publicada no portal do Estadão em 9/5/2021

O esquema de um orçamento secreto montado pelo presidente Jair Bolsonaro para garantir apoio no Congresso atropela a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e posições assumidas por ele na campanha e já no exercício do mandato. Na liberação sigilosa de R$ 3 bilhões para serviços de obras e compras de tratores e máquinas agrícolas indicados por um grupo escolhido a dedo de deputados e senadores, no final ano passado, o governo atropelou ao menos três exigências da legislação.

No que tange à LDO de 2020, as autorizações de repasses de recursos do Ministério do Desenvolvimento Regional deixaram de estabelecer critérios para definição das localidades beneficiadas e não apresentaram indicadores socioeconômicos ao distribuir os recursos. Além disso, não priorizaram a continuidade de obras iniciadas.

O Estadão revelou um esquema de compra de apoio parlamentar por meio de um novo tipo de emenda de relator-geral do orçamento, a chamada RP9. Do total de repasses previstos, R$ 271,8 milhões foram destinados à aquisição de máquinas pesadas por preços até 259% acima dos valores da tabela de referência do governo válida para 2021. O esquema ficou conhecido como “tratoraço”.

Secretamente, esses recursos extras foram concentrados num grupo de parlamentares. É um dinheiro paralelo ao previsto nas tradicionais emendas individuais a que todos os congressistas têm direito, aliados ou oposicionistas.

Numa radiografia do orçamento secreto, as cidades de Tauá (CE), Santana (AP) e Petrolina (PE) aparecem em destaque como os redutos eleitorais de aliados do governo que receberam recursos de maneira desproporcional, por critérios apenas políticos. Os R$ 110,3 milhões que o relator-geral do orçamento, Domingos Neto (PSD-CE), destinou a Tauá, em dezembro, logo após a eleição de sua mãe, Patrícia Aguiar (PSD), fizeram da cidade a maior beneficiada do Brasil por repasses da pasta do Desenvolvimento Regional no ano passado.

Encravado no Sertão dos Inhamuns, o município de 57 mil moradores vive da agricultura familiar e da pecuária. É um feudo familiar. Patrícia está no quarto mandato. O avô paterno do deputado, que lhe rendeu o nome, também foi prefeito duas vezes. O pai, Domingos Filho, foi vice-governador no mandato de Cid Gomes, entre 2011 e 2014, e depois virou adversário da família Ferreira Gomes.

Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre (DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre redirecionou o investimento. O senador ainda redirecionou R$ 30 milhões para Tartarugalzinho (AP), onde o correligionário Bruno Mineiro (DEM) se elegeu.

Laços de família foram motivos também que tornaram Petrolina (PE) a nona cidade com mais investimentos do Ministério do Desenvolvimento Regional em 2020. O município é administrado por Miguel Coelho (MDB), filho do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). O líder do governo no Senado ditou a transferência de R$ 46.569.000,00 ao município por meio da estatal Companhia do Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) em dois convênios, celebrados nos mesmos valores.

Há mais de duas mil cidades no Brasil com piores indicadores socioeconômicos do que Tauá, Santana e Petrolina. No ranking nacional de Índice de Desenvolvimento Humano, Petrolina e Santana estão na metade superior, enquanto Tauá não está nem entre as duas mil cidades de mais baixo índice, dentro de um total de 5565 municípios. Só no Ceará há 140 cidades com IDH mais baixo que o município administrado pela mãe do deputado.

De acordo com a LDO de 2020, quando o Congresso não estabelece na lei orçamentária localidades específicas a serem beneficiadas, a transferência de recursos do governo “fica condicionada à prévia divulgação em sítio eletrônico, pelo concedente, dos critérios de distribuição dos recursos, considerando os indicadores socioeconômicos da população beneficiada pela política pública”. O texto, que consta no artigo 77, tem por objetivo prestigiar a imparcialidade na definição do destino do dinheiro público, evitando o personalismo.

Esse tipo de exigência passou a ser previsto em 2010 nas leis orçamentárias. “Pensamos que a medida vai ao encontro das comunidades mais necessitadas, uma vez que essa tem maiores chances de ser beneficiada por critérios construídos a partir de políticas públicas”, disse naquele ano o relator da LDO 2010, Wellington Roberto (PL-PB) – por coincidência, um dos grandes beneficiados, agora, pelo orçamento secreto. Ele conseguiu indicar um valor total de R$ 80 milhões.

A regra deveria ter sido observada em relação aos R$ 3 bilhões que constam no planilhão do Ministério do Desenvolvimento Regional divulgado em janeiro pelo Estadão. A abertura desses créditos foi feita por meio dos projetos de lei do Congresso Nacional (PLNs) de números 29, 30 e 40, por meio de emenda de relator-geral do orçamento (a chamada RP9), estabelecendo, apenas, os tipos de ação orçamentária que deveriam receber os recursos.

Pelas regras, o Congresso, no entanto, não tem o poder de definir quais projetos devem ser executados. Essa é uma atribuição exclusiva do governo. Caberia ao Ministério do Desenvolvimento Regional fazer a prévia divulgação de critérios e a análise de indicadores socioeconômicos para, então, escolher os projetos.

Parlamentares até tentaram forçar o controle sobre o destino deste tipo de recursos ao aprovar, também na LDO 2020, um artigo prevendo que “as indicações e priorizações das programações com identificador de resultado primário derivado de emendas serão feitas pelos respectivos autores”. Na prática, esse artigo permitiria que os parlamentares, legalmente, indicassem o destino dos R$ 3 bilhões.

No entanto, o próprio presidente Jair Bolsonaro vetou esse artigo na LDO de 2020, sob a alegação de que contrariava o interesse público. Nas razões do veto, enviadas ao Congresso em 11 de novembro de 2019 – antes da aliança com o Centrão – o presidente afirmou que o dispositivo era “incompatível” com a “complexidade operacional” do procedimento em estabelecer que as indicações e priorizações sejam feitas pelos “autores”. “Ademais, o dispositivo investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas, ampliando as dificuldades operacionais para a garantia da execução da despesa pública.”

Na teoria, o Congresso não derrubou o veto, mas, na prática, os parlamentares fizeram valer as suas vontades. A resistência do presidente derreteu-se à medida que ele se aproximou dos líderes do Congresso, diante da necessidade de se blindar contra pedidos de impeachment por apoiar atos antidemocráticos e pela criticada atuação do governo federal no enfrentamento à pandemia. Assim, o governo contrariou o próprio veto presidencial ao empenhar, sem critérios técnicos pré-definidos, R$ 3 bilhões em dezembro para os destinos que vieram carimbados por deputados e senadores.

Carimbado

A constatação é reforçada com a análise de mais de 101 ofícios de deputados e senadores enviados ao governo com indicações para obras e compras públicas, revelados pelo Estadão. As propostas dos políticos, invariavelmente, foram acolhidas.

Na Codevasf, ao menos 30 convênios foram assinados com prefeituras seguindo orientações de sete parlamentares. O senador Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo no Congresso Nacional, indicou dois convênios de R$ 23.875.000,00, para asfalto e drenagem em Araguaína e Gurupi, no Tocantins. O senador Elmano Ferrer (Progressistas-PI), vice-líder do governo no Senado, solicitou em ofício dez convênios com valores entre R$ 300 e 500 mil para o Piauí.

Em outro órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Regional, a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) celebrou convênios conforme os apontamentos dos deputados e senadores. Nos ofícios, a reportagem encontrou sete propostas de convênios específicos, enviadas por três parlamentares, todas elas acolhidas. O número é apenas uma fração do total, pois o governo só entregou à reportagem uma parte dos documentos com as indicações feitas pelos parlamentares à Sudeco.

Uma nota técnica da consultoria do Senado, que analisou a distribuição global de recursos do Ministério do Desenvolvimento Regional entre Estados e municípios em 2020, constatou concentração de 25% de valores em apenas 22 dentre os 2214 municípios aos quais o ministério e seus órgãos vinculados fizeram transferências. Isto é, um centésimo deles recebeu um quarto dos valores. Em média, essas 22 cidades receberam R$ 54.404.161,77, enquanto as demais, R$ 2.113.132,79.

Esse levantamento inclui não apenas os valores do orçamento secreto de R$ 3 bilhões de dezembro, mas todos os investimentos feitos pela pasta e seus órgãos vinculados ao longo do ano. No ranking geral de cidades com mais valores empenhados, aparecem duas cidades do Rio Grande do Norte, reduto do ministro Rogério Marinho, que é cotado para concorrer ao governo estadual em 2022 – Parnamirim, com R$ 60,7 milhões, e Natal, R$ 58,9 milhões.

A nota técnica, redigida pelo consultor do Senado Fernando Moutinho, a pedido do gabinete do senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), concluiu que os repasses não respeitaram os critérios de desenvolvimento socioeconômico que a Lei de Diretrizes Orçamentárias, no artigo 77, manda observar.

Obras paralisadas

Além da falta de critérios, o orçamento secreto atropelou também a necessidade de priorizar do orçamento para obras em andamento e para a manutenção das obras existentes. A exigência é feita pela LDO 2020, no Art. 19º, e pela Lei de Responsabilidade Fiscal, no Art. 45. O objetivo disso é trazer eficiência e evitar a dispersão de recursos e a permanência desnecessária de estruturas inacabadas.

No entanto, o Congresso aprovou e o governo reservou os R$ 3 bilhões para novos projetos, mesmo diante de uma série de obras inacabadas sob supervisão da pasta, que ainda guardam o empenho de valores ainda maiores.

Os dados do Painel de Obras do Ministério do Desenvolvimento Regional, no dia 22 de abril, apontam a existência de 8.458 contratos em execução, assinados antes de 2020, com valores totais de R$ 71,71 bilhões, que ainda precisam do empenho de R$ 16,05 bilhões do Orçamento Geral da União para serem concluídos. Na média, é como se cada um desses contratos ainda necessitasse de R$ 1,9 milhão. Além disso, há 502 contratos paralisados, também assinados antes de 2020, com valores totais de R$ 8,22 bilhões, dos quais ainda falta empenhar R$ 2,76 bilhões.

Todos esses 8.960 contratos estão em situação “normal”, o que quer dizer que não expiraram, não foram rescindidos, não foram alvo de liminares, não estão com cláusulas suspensivas e não estão em fase de prestação de contas. A ausência de impedimentos contratuais é um indicativo de que pode estar faltando recursos para a conclusão das obras, principalmente, no caso daquelas que estão paralisadas mesmo com situação de contrato “normal”. Mesmo naquelas obras que estão em andamento, o índice de execução equivale a R$ 49,5% dos valores totais dos contratos.

Se o governo tivesse cumprido a Lei de Responsabilidade e Fiscal e a LDO 2020, os R$ 3 bilhões deveriam ter como destino, predominantemente, essas obras, em vez da pavimentação asfáltica de novos trechos de estradas.