15/07/2020 - 13:30
Com sua voz aveludada e timbre grave, Dorival Caymmi cantava, “Minha jangada vai sair pro mar. Vou trabalhar, meu bem-querer. Se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer”. Os versos criados por um dos maiores compositores da música popular brasileira, conta ao mundo como o país se relaciona com a pesca marítima: uma atividade familiar, extrativista, vulnerável à sorte do pescador, do bom tempo e do mar farto. Uma cultura mais voltada aos livros de romance, do que às pragmáticas bíblias de negócios e administração.
tempo e do mar farto. Uma cultura mais voltada aos livros de romance, do que às pragmáticas bíblias de negócios e administração. Ainda que o País tenha mais de sete mil quilômetros de faixa costeira banhada pelo Oceano Atlântico e raras ocorrências de catástrofes naturais, o potencial da maricultura, por aqui, ainda é muito mal explorado. “O agronegócio se desenvolveu de costas para o mar”, afirma Eric Routledge, chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Pesca e Aquicultura. Ao virar os olhos para o continente, o produtor brasileiro deixa escapar um verdadeiro tesouro que deve chegar a US$ 155 milhões em 2023, expectativa global de consumo de peixes e frutos do mar.
Atualmente 580 espécies aquáticas são cultivadas em todo o mundo, com produção de 171 milhões de toneladas de peixes de água salgada e frutos do mar. A perspectiva é de crescimento de 5% ao ano, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Dentre os maiores consumidores, está a China que já tem nos frutos do mar a sua principal fonte de proteína animal. Em seguida, Indonésia, Japão e Coreia do Sul. O Brasil está na sexta posição, mas tem um mercado interno bastante promissor. A média de consumo de pescado pela população brasileira gira em torno de 10 kg por habitante ao ano, enquanto a média global é o dobro e deve chegar a 29,1 kg/hab./ano em 2030. Mesmo diante de uma necessidade ainda moderada, o País não produz — nem pesca — o suficiente para atender a demanda interna, e precisa recorrer às importações. “A balança comercial brasileira de pescado hoje é negativa em US$ 1 bilhão. Não é verdade que o Brasil não come peixe, mas há muito espaço para crescer tanto em consumo quanto em oferta”, afirma o diretor da Embrapa.
Sem aportes vultosos de capital, a maricultura brasileira ainda é território de micro e pequenas empresas. Só em Santa Catarina, referência em produção de frutos do mar no Brasil, são mais de 490 famílias envolvidas na indústria. “A tradição do estado na maricultura começou na década de 1980, quando o governo estadual viu na atividade uma possibilidade de gerar renda para uma população pesqueira que estava migrando para a cidade por falta de emprego”, afirma Alex dos Santos, pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI). O modelo de gestão familiar se mantém desde então.
Atualmente, Santa Catarina é o maior produtor de moluscos do país com 14 mil toneladas do produto ao ano, sendo 12 mil de mexilhões e duas mil de ostras. O volume representa 98% da produção de todo o País. Os outros 2% estão distribuídos entre Rio de Janeiro e alguns estados do Nordeste. Para Felipe Suplicy, também pesquisador da Epagri, o sucesso do estado no cultivo de moluscos foi possível devido à conjunção dos esforços do Governo Estadual, da Universidade Federal de Santa Catarina e da própria Epagri. Para a indústria ganhar escala na região e em outros estados falta um projeto nacional para a valorização da atividade que hoje trabalha de forma cooperativista. “A maricultura pode ser tão relevante na balança comercial como são as indústrias de aves e suínos, mas isso só acontecerá se houver uma decisão do País em ser referência na produção e exportação de frutos do mar”, explica.
Um exemplo do modelo de negócio instalado em Santa Catarina é a Fazenda Freguesia criada em 1987, por Luiz Carlos Costa. Comandada ainda hoje pelo fundador e seu filho Leonardo Costa, a área de 1,6 hectare produz três milhões de ostras por ano para consumo próprio, e cuida do processo de engorda de outros dois mil animais para um parceiro da região. Ao todo emprega 46 pessoas. “Para aumentar a rentabilidade, além da Fazenda temos uma rede de pequenas empresas que inclui frigorífico com estrutura para fazer a inspeção dos animais, restaurante e bar próprios, além de um receptivo de turismo que inclui passeio de barco à fazenda e degustação dos produtos”, afirma Leonardo. Hoje o custo de produção da ostra gira em torno de R$ 7,5 a dúzia e o preço comercializado chega a R$ 15. Segundo dados da Epagri, cada hectare de uma fazenda de molusco consome de R$ 20 mil a R$ 40 mil em investimentos.
Ainda que as Fazendas do Mar sejam raras no Brasil, iniciativas em outros estados começam a chamar a atenção pelos bons resultados registrados nos últimos anos. Nas águas frias de Angra dos Reis está instalada a Fazenda Marinha Vieiras da Ilha, dos sócios Bruno Zirotti, Felipe Pereira Barbosa e Nuno de Azambuja Seabra. A fazenda foi comprada de um pequeno produtor em 2015 quando a produção era de 10 mil vieiras por ano. De lá para cá, cresceu para 150 mil animais e só não expande mais ainda neste ano devido à infraestrutura limitada já que as áreas exploradas são obtidas por licitações. “A demanda interna é muito grande, o que produzimos, vendemos. Por isso, já estamos preparando o processo necessário para dobrar de tamanho em até dois anos”, explica Bruno Zirotti, sócio da Fazenda.
Com status de iguaria na culinária mundial, as vieiras trazem mais rentabilidade do que ostras e mexilhões. O custo para produção de uma dúzia é de R$ 16, já o preço ao consumidor final do produto in natura passa dos R$ 50. No papel, a rentabilidade compensa, mas a mortalidade ainda é um problema grave. “Ano passado chegamos a perder 40% da produção em uma fase bastante próxima à comercialização porque a água esquentou um pouco mais do que o normal”, afirma Zirotti. O prejuízo, neste caso, é irrecuperável.
PEIXES
A maricultura, no entanto, pode ir além de frutos do mar. Um dos maiores desafios do Brasil é produzir peixes em cativeiro dentro de águas ocêanicas. Os empecilhos são muitos. O modelo inshore, com as gaiolas colocadas próximas à costa, desagrada ambientalistas, pois o uso de ração cria sedimentos que desequilibram o meio ambiente. Além disso, é uma área nobre, disputada para realização de esporte e lazer.
No cultivo offshore, com gaiolas colocadas a 25 metros de profundidade em mar aberto, os desafios são outros. O modelo requer alto investimento tanto na implementação das fazendas, já que a tecnologia é toda importada, quanto no manejo. “Imagine que para alimentar os peixes é preciso viajar duas horas para ir e duas para voltar. Se o mar está ruim e o barco não tem como chegar, o cardume pode morrer por falta de ração”, afirma Suplicy da Epagri.
Cláudia Kerber, sócia proprietária da empresa Redemar Alevinos, conhece bem as dificuldades. Sua empresa foi uma das pioneiras na tentativa de produção do peixe Bijupirá em alto-mar. “A espécie é tipicamente brasileira e sua adaptabilidade para o cultivo parecia ser muito interessante. Mas, o peixe se mostrou caro e pouco procurado no mercado”, explica. Foi então que a produção se voltou para a Garoupa Verdadeira. Novamente, a empresária tentou o cultivo dentro do oceano, mas novos problemas surgiram. “Fizemos um projeto-piloto de modelo inshore, mas tivemos problemas na disputa da área marítima com outras atividades, além de roubo da produção”, esclarece.
A saída foi levar a maricultura para dentro do continente. Atualmente a Redemar Alevinos produz 30 toneladas de Garoupas em tanques de recirculação e em viveiros de camarão. O plano é chegar a 100 toneladas em 2022. “A meta é ousada, mas com a produção no continente tivemos melhores resultados operacionais e também na qualidade do produto. Além disso, a Garoupa Verdadeira está muito valorizada na culinária brasileira e em mercados internacionais como os Estados Unidos”, explica Rhyder Ramos, sócio da Cláuda na Redemar.
Ainda que parte da demanda já seja conhecida, o Brasil não exporta Garoupa. Mesmo a produção em cativeiro de qualquer espécie de peixe no oceano é irrelevante. Caio Vianna, pesquisador da maricultura brasileira e mestrando na Universidade da Califórnia, acaba de desenvolver uma plataforma digital em parceria com mais cinco pesquisadores e com a WWF Brasil para ajudar o investidor a entender melhor o potencial da atividade no Brasil, a maricultura.weebly.com. “O País tem mais de 10 mil km² de faixa litorânea com condições ideais para criar peixes como o Bijupirá. Isso só ocuparia 1% da área econômica exclusiva do Brasil e produziria mais de 40% da demanda do mercado interno”, afirma Caio Vianna, direto da Califórnia.
Para aproveitar as oportunidades que aparecem no horizonte de sua costa, o Brasil precisa começar a trabalhar imediatamente. “O primeiro passo é eleger um produto nacional para ser a imagem da maricultura brasileira no mundo. A partir daí, unir as forças das iniciativas pública e privada para criar um mercado consumidor e ganhar escala”, explica Eric Routledge, da Embrapa. A Noruega e o Chile conseguiram com o salmão. Quem sabe o Brasil também não se torna uma potência exportadora de proteínas animal vindas do mar? Garoupa, Bijupirá, ostras, camarões ou mexilhões. Opções não faltam.