A pandemia turbinou os negócios dos microempreendedores brasileiros, especialmente por causa das vendas do comércio online. Quase 10% dos que iniciaram o próprio negócio como microempreendedores individuais em 2019 e se mantiveram ativos nos últimos 12 meses viraram empresas maiores, revelou um estudo feito a pedido do ‘Estadão’ pela Serasa Experian, consultoria especializada em informações financeiras.

A taxa de ascensão dos microempreendedores individuais (MEIs) em 12 meses até março deste ano, de 9,1%, é mais que o triplo da registrada entre 2017 e 2019, que foi de 2,7%. “Aumentou bastante a fatia de microempreendedores que conseguiram fazer um upgrade de seus negócios por conta do desempenho financeiro muito positivo”, afirmou o economista Luiz Rabi, responsável pelo estudo.

Para chegar a esse resultado, foi avaliado o faturamento de 700 mil MEIs entre abril de 2020 e março deste ano que estavam funcionando regularmente. “Empresa morta não foi considerada”, disse o economista. Os microempreendedores que ganharam musculatura e passaram a ser micros ou pequenas empresários faturaram mais que R$ 81 mil no ano ou R$ 6.750 mensais.

Tornar-se um microempreendedor individual hoje é uma alternativa comum a milhões de desempregados para obter renda no momento em que a desocupação no País atinge níveis recordes. Dos 3 milhões de empresas abertas anualmente no Brasil, atualmente cerca de 80% são MEIs.

Microempreendedores voltados para o comércio foram os que mais conseguiram ascender no período, com 10,8% deles passando a gerir empresas maiores, apontou o estudo. É um resultado que está acima da média (9,1%). A mobilidade dos microempreendedores com negócios ligados à indústria, à produção rural e aos serviços foi menor. Em 12 meses até março deste ano, 7,9% dos microempreendedores individuais industriais viraram empresas de porte maior. Na produção rural e nos serviços, essas marcas foram de 6,8% e de 8,4%, respectivamente.

Vendas

Um porcentual maior de empresas do comércio conseguiu ampliar o faturamento e se tornar maior na pandemia em relação ao de outros segmentos, como o de serviços, por causa da mudança do padrão de consumo. Com as restrições à abertura das lojas físicas, o varejo online avançou. “Na pandemia, os brasileiros passaram a consumir mais produtos do que serviços”, observa Rabi. Além disso, a prestação de serviços é pequena no online.

Na análise do economista, os MEIs viraram empresas maiores sobretudo por causa de estímulos fiscais monetários dados pelo governo para atenuar os efeitos da pandemia. E, em razão das restrições à circulação de pessoas, esses recursos foram canalizados para o comércio online.

Pesquisa recente da consultoria para avaliar o impacto da pandemia nas micro, pequenas e médias empresas, revelou que 73,4% desses empreendedores vendiam ou passaram a vender produtos e serviços online, com destaque para redes sociais – WhatsApp (72%), Instagram (44%), Facebook (36,7%) – e shoppings virtuais ou marketplaces (24,7%).

Entre março do ano passado e abril deste ano, 2,5% dos microempreendedores individuais ativos que vendiam produtos no marketplace do Magazine Luiza, por exemplo, ultrapassaram a barreira de vendas de R$ 81 mil por ano. Eles deixaram a categoria de MEIs e viraram empresas maiores, contou Mariana Castriota, gerente do shopping virtual da empresa. “Essa é uma taxa significativa.”

Na sua avaliação, a ascensão é um movimento muito agressivo para o microempreendedor que nem sempre tem estoque suficiente para vender mais de R$ 6.750 por mês. O traço comum entre aqueles que conseguiram mudar de patamar de vendas foi, na sua opinião, a perspicácia de ter produto com preço adequado.

No fim de março de 2020, logo no início da pandemia, a varejista acelerou a implantação do projeto batizado de Parceiro Magalu para digitalizar as micro e pequenas empresas analógicas que ficaram de mãos atadas por causa das restrições ao funcionamento do comércio. Foi criada uma série de ferramentas no marketplace para facilitar a conexão dessas companhias com o mundo online.

Para o consultor Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), antes mesmo da pandemia, os marketplaces já vinham passando por um processo de modernização ao criar vários serviços para os lojistas, como plataforma de pagamento, crédito e logística, por exemplo. “A pandemia só colocou velocidade no processo de modernização para os marketplaces se tornarem ecossistemas, foi coincidência.” São esses novos serviços, na opinião de Terra, que têm feito a diferença. “No Brasil e no mundo, o comércio online cresce mais que o varejo físico e o marketplace cresce mais que o comércio online.”

Tatame vira um hit e dobra faturamento

Desde 2013 no comércio online vendendo tatames de borracha (EVA), usados para forrar o chão em academias e brinquedotecas, por exemplo, o empresário Caio Olivieri Michel decidiu abrir uma loja física em Pirituba, zona oeste da capital paulista, em 2017.

De lá para cá a Loja da Maria só cresceu: de microempreendedor individual, virou microempresa e pequena empresa. Mas o grande avanço ocorreu na pandemia. “Era uma empresa pequena e passei a ser uma empresa de médio porte, foi uma explosão de vendas muito grande.”

Com as academias de ginástica e escolas fechadas, as pessoas começaram a se virar em casa. Compraram tatames para fazer ginástica, forrar o chão para as crianças brincarem. Com isso, o faturamento mensal da empresa, da qual a sua mãe Nanci Olivieri é sócia, dobrou nos últimos 12 meses. E o principal canal de vendas foi o online, que responde hoje por 90% do faturamento. “Estou nos principais marketplaces (shoppings virtuais)”, contou.

Para atender cerca de 15 mil pedidos por mês, o dobro do que fazia antes da pandemia, o empresário ampliou o galpão em Pirituba. De lá são despachados cerca de 35 mil metros de tatame por mês para todo o País. Também foi preciso aumentar o número de empregados. Eram dez antes da pandemia e agora são 20. Eles cuidam da emissão de pedidos e notas fiscais, do atendimento ao cliente, da logística e da embalagem.

Junto com o crescimento da empresa, o imposto pago também aumentou. Antes representava cerca de 15% do faturamento bruto e agora é 25%. “Estamos pagando mais imposto, mas lucramos mais também”, disse Michel.

De vendas para vizinhança a varejista nacional

Em abril de 2020 fazia seis anos que Raphael Chiarelli tinha aberto com a mulher, fonoaudióloga, uma loja física no Jardim São Paulo, zona norte da capital paulista. Com o nome fantasia Soluções Auditivas, a loja vendia basicamente aparelhos para surdez e pilhas para clientes que moravam na vizinhança.

Quando começou a pandemia do coronavírus, um pouco antes do período de fechamento total do comércio, a freguesia sumiu. “Fiquei uns 20 dias sem vender para ninguém”, contou Chiarelli.

A maioria dos seus clientes é de idosos, na faixa de 75 a 80 anos, o grupo mais vulnerável à covid-19. Diante da queda abrupta no movimento, a saída para não fechar as portas da loja física foi ingressar em shoppings virtuais. “Sempre fui meio pé atrás com o e-commerce porque não imaginava que idoso comprasse pela internet.”

Para a surpresa de Chiarelli, o faturamento deu um salto. Depois de oito meses no e-commerce ele, que era microempresário até então, se viu dono de uma pequena empresa. A venda anual da loja física, que antes variava entre R$ 580 mil e R$ 610 mil, atingiu R$ 3,8 milhões em dezembro do ano passado. Hoje a loja tem mais de 45 mil clientes no Brasil.

A proeza desse resultado é que ele foi atingido sem vender o aparelho de surdez, o item de maior valor. De acordo com as regras dos órgãos de saúde, não é permitido comercializar o equipamento pela internet. Por isso, o foco do negócio online foi para as pilhas e outros produtos geriátricos, como bengalas, fraldas, por exemplo, num total de 35 itens. Hoje ele comercializa mil cartelas de pilhas auditivas por semana no varejo online, ante oito quando só tinha loja física.

Loja de vinhos decola com venda na internet

Em dezembro de 2019, a hondurenha Cindy Lakeman decidiu transformar a paixão por vinhos num negócio lucrativo. Depois de ter ficado alguns anos cuidando das filhas pequenas, ela, que é advogada de formação, resolveu voltar à ativa vendendo vinhos para amigos e conhecidos que gostam da bebida. Nessa época se tornou uma microempreendedora individual (MEI) e trabalhava de casa, vendendo bebidas por meio do aplicativo WhatsApp.

A carteira de clientes foi aumentando e o passo seguinte, que era ter um site próprio para expor os produtos, foi interrompido pela pandemia. “Na época, havia muitas incertezas.”

Em julho de 2020, já em um shopping virtual, suas vendas dispararam. “Dias depois começaram as primeiras vendas e foi aquela correria, tudo da sala de casa, lembra Cindy.

De 20 garrafas por mês, ela começou a vender 100, depois 300 e chegou a 500 em setembro. Em outubro, ela não conseguia mais emitir nota fiscal, pois seu faturamento já excedia o limite de MEI, que é de R$ 6,5 mil mensais. Resultado: teve de deixar de ser MEI, contratou um contador e virou microempresária. Em novembro e dezembro, quando a empresa voltou a funcionar, Cindy passou de mil garrafas vendidas por mês. O passo seguinte foi transferir a empresa para uma sala comercial, contratar uma pessoa para ajudar nas embalagem e ter à disposição três motoboys para a entrega local, mais rápida.

A microempresária que começou vendendo 100 rótulos, hoje tem 300 e trabalha com a meta de 500 até dezembro. O negócio que começou com investimento de R$ 50 mil em estoques já dá lucro. O site está em operação, mas a maior parte das vendas ocorre no marketplace. “O site é a vitrine.”

‘Procuramos alternativas para aumentar a renda’

Ana Paula Simões e o marido Luciano Pereira de Godoy vivem hoje uma realidade completamente diferente em relação ao fim de 2019. Na época, Godoy, que é técnico de informática, tinha acabado de perder o emprego, depois de 14 anos de carteira assinada. Ela já prestava serviços como freelancer na área de programação num site de buscas. E ambos estavam insatisfeitos. “Começamos a procurar alternativas para aumentar a renda”, afirmou Ana Paula.

A primeira ideia foi abrir uma loja virtual para vender relógios de um fornecedor conhecido. No começo ingressou em dois shoppings virtuais, mas o movimento era muito fraco.

Em abril do ano passado, eles migraram da loja para outro marketplace, mas sem muito otimismo. Afinal, relógio de pulso não é um item essencial de compra em meio à pandemia. Mas o casal foi surpreendido. “A gente estourou assustadoramente: vendemos R$ 50 mil num mês e no outro também”, conta Ana Paula. Isto é, venderam em dois meses mais do que poderiam faturar o ano inteiro por serem MEI, ou seja, até R$ 81 mil.

Por conta desse resultado, a loja APL Simões subiu um degrau, passou de MEI a microempresa, recolheu mais impostos e até contratou um escritório de contabilidade para controlar as finanças. No fim do ano passado, na época da Black Friday, a loja chegou a tirar 200 pedidos por dia, enviados principalmente para Estados do Nordeste e cidades do interior. Hoje fatura entre R$ 90 mil e R$ 100 mil por mês.

Ana Paula atribuiu o sucesso à forte penetração do marketplace e também ao fato de vender produtos com preços acessíveis.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.