01/06/2007 - 0:00
O escritor Euclides da Cunha, em seu livro “Os Sertões”, descrevia o vaqueiro como um “guerreiro antigo exausto da refrega”. Sua roupa, o gibão, seria uma espécie de armadura. “É a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo”, contava Cunha, na obra de 1902. Pouco mudou um século depois da publicação do livro. Os vaqueiros, aqueles homens que trabalham na lida diária do gado, permanecem como heróis rurais, mesmo com a profunda transformação que o campo brasileiro tem passado. Agora, outra obra também tenta captar a alma desses guerreiros do sertão. Lançado no começo de 2007, o livro “Encourados”, projeto idealizado pelo fotógrafo pernambucano Geyson Magno, mostra a vida dos vaqueiros de hoje, que não são nada diferentes dos descritos por Euclides da Cunha. Cansado de ver o sertão retratado pelo viés da seca, ele começou um trabalho de pesquisa focado na figura do vaqueiro.
DETALHES: ferro usado para marcar o gado e
“O cerne do sertanejo está relacionado a isso, à chegada do gado, que veio para ser a força motriz do engenho. Nordeste não é seca, isso é estereótipo. Lá, as pessoas trabalham, mesmo sem chuva, sabem viver. Sabem qual árvore vai dar florada, onde podem achar o mel”, diz.
Imbuído desse espírito, Magno viajou pelo sertão convivendo com os vaqueiros, durante três anos e meio. A princípio, seu objetivo era ganhar intimidade. Só em um segundo momento sacava a máquina e iniciava sua reportagem fotográfica. Foi assim, aos poucos, conquistando a confiança destes sertanejos, que Magno produziu mais de 23 mil fotos, incluindo as selecionadas para o livro. Na verdade, mais que um acervo de imagens, a obra “Encourados” revela uma estética e um jeito de ser arraigado na civilização do couro, que tem no vaqueiro o seu personagem maior.
Vaqueiro trabalhando o couro
No projeto gráfico, isso fica muito claro. A fonte, por exemplo, foi feita com base na tipografia armorial, alfabeto lançado por Ariano Suassuna, a partir dos ferros de marcar boi da região do Cariri. “Cada família de vaqueiro tinha uma base de ferro que ia ganhando detalhes ao passar de geração”, explica Ricardo Gouveia de Melo, diretor de arte de “Encourados” e autor da fonte, junto com a designer Giovana Caldas.
Outro viés desta arte sertaneja é a vestimenta, o típico gibão de couro, feito por vaqueiros que passam a tradição de pai para filho. Mas a tal armadura apresenta diferenças expressivas entre um Estado e outro. No Maranhão e no Piauí, por exemplo, os vaqueiros não usam botas, mas um chinelo fechado, geralmente de couro de veado, que não é preso ao calcanhar. O motivo é se livrar do tombo, caso o sapato se enganche com algum espinho. Outra peculiaridade são os pontilhados que contornam o gibão. Eles variam de região para região, sendo que em Pernambuco e no Ceará são contornados com fitas coloridas. Diferenças à parte, o modo de ser do vaqueiro é o mesmo em qualquer lugar. Nas palavras de Magno, “eles nos dão uma aula de solidariedade, gente com tão pouco e com largueza de gestos”. Outro traço marcante é a relação com os animais. Os cavalos e o gado são tratados como um ente da família. O vaqueiro não tem o costume de comer carne. Ele só mata uma rês quando não há mais serventia. Enquanto a vaca está dando leite e o boi continua com capacidade reprodutiva, ele não se desfaz. Mesmo porque a carne acaba em poucos dias, já a força motriz e o leite são meios de sobrevivência na aridez do sertão.
DIFERENÇAS: os pontilhados que contornam o gibão variam de Estado para Estado. No Ceará, eles são contornados por fitas coloridas
SIMPLICIDADE: o jeito de ser do vaqueiro mostra um sertão cheio de cores, gestos e solidariedade
Este sertão vibrante em sua arte, cores e personagens ganha novo fôlego com o projeto “Encourados”. O que era para ser só um livro de fotos ganhou textos, fruto da pesquisa da jornalista Adriana Victor; trilha sonora (CD que acompanha a publicação) e ilustrações, obra de Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano Suassuna. Além disso, virou uma exposição fotográfica itinerante que já passou pelas principais capitais do Nordeste e deve chegar ao Sudeste em breve. “Estamos captando recursos para percorrer todo Brasil. Queremos contar esta história que o brasileiro desconhece, afinal há descendentes dessas pessoas espalhados pelo País inteiro”, finaliza o fotógrafo.
Encourados, de Geyson Magno e Adriana Victor. Editora: B52 Desenvolvimento Cultural. R$ 130