03/07/2014 - 14:50
A inda está fresca na memória de Milania Tischer, produtora rural em Pinhalzinho, município do oeste catarinense, a lembrança do dia em que, no verão de 1985, um fusca cinza e brilhante cortou a estradinha poeirenta, ultrapassou a porteira do sítio familiar e estacionou em frente à sua casa. Hoje, aos 57 anos de idade, ela diz lembrar com exatidão sua sensação de espanto ao ver no volante do fusca o marido, José Tischer, em vez do técnico agrícola da cooperativa local, que era esperado para aprovar o projeto de instalação de um aviário na pequena propriedade de oito hectares. “O primeiro carro a gente nunca esquece”, diz Milania, com os olhos cheios d’água, que até então não imaginava que um dia pudesse ser dona de um carro. Dali em diante, e por muito tempo, sua distração favorita era colocar uma roupa bonita nos dois filhos, montar no fusca com o marido e passear pelas redondezas da propriedade. O sonho de Milania e José só fora possível de ser realizado porque um ano antes da história do fusca o casal havia tomado uma decisão que mudaria as suas vidas para sempre: em vez de continuarem a caminhar solitários na labuta diária do cultivo de grãos, eles haviam se associado à Cooperativa Central Aurora Alimentos, com sede em Chapecó, município de 200 mil habitantes a 60 quilômetros de Pinhalzinho. Hoje, em vez do fus quinha sem graça, uma flamante Saveiro zero-quilômetro, com direção hidráulica e ar-condicionado, ocupa a garagem dos Tischer.
Para eles, assim como para outras 70 mil famílias da região, o bem mais precioso é ser sócio-proprietário de uma das maiores organizações de produtores rurais do País, mais conhecida no mercado como Aurora Alimentos, dona de um faturamento de R$ 5,7 bilhões no ano passado. Mas a Aurora pensa grande: sua meta é duplicar de tamanho e chegar em 2020 com vendas de R$ 12 bilhões. Para marcar o esperado gol de placa na virada da década, a Aurora conta com o conhecimento de um comandante experiente, uma espécie de Felipão dos negócios.
Trata-se do executivo Mário Lanznaster, convocado para tirar a cooperativa da pior crise de sua história, provocada pela desaceleração econômica de 2007, e um ano depois recolocá-la no caminho do crescimento, a uma taxa de anual de 20%. A boa estrela de Lanznaster nos negócios também pode ser vista na área esportiva: em sua gestão, a Aurora passou a patrocinar o clube de futebol da cidade, o Chapecoense, elevado pela primeira vez em sua história à primeira divisão do Campeonato Brasileiro. “A Aurora Alimentos não é minha, é do produtor”, diz Lanznaster. “Preciso trabalhar duro para conquistar um bom resultado nesse jogo, porque meus patrões são exigentes.”
Trabalho duro e disposição parecem não faltar entre os produtores rurais que estão protagonizando um modelo de cooperativismo exemplar: o da profissionalização do negócio, com produção sustentavelmente econômica. A Aurora conta com 12 cooperativas filiadas nos Estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Paraná, além de Santa Catarina, onde se concentra a maior parte dos produtores. Sua estrutura física também não deixa nada a desejar na comparação com as gigantes do setor, como a BRF e a Seara. Ao todo, são 43 estabelecimentos divididos em oito unidades industriais de suínos, seis de aves, um laticínio, seis fábricas de ração, 13 unidades de ativos biológicos, entre granjas, incubatórios e laboratórios, mais oito unidades de vendas para o mercado atacadista e a sede. “O resultado de tudo isso são 800 produtos oferecidos ao consumidor”, diz Lanznaster. Disputam as prateleiras dos supermercados, com a marca Aurora, cortes de aves e suínos, pratos prontos, sanduíches, embutidos, empanados, bebidas lácteas, iogurtes, cremes, além de massas, pizzas, pães de queijo e batata. Da receita obtida no ano passado, 43% vieram dos suínos, 20% das aves, 11% dos lácteos e os restantes 26% dos demais produtos.
Com esse porte, a Aurora Alimentos, que completou 45 anos em abril, transformou-se na maior cooperativa de alimentos processados do País. Atualmente, o Brasil conta com 1,6 mil cooperativas agropecuárias, que reúnem um milhão de famílias. Segundo Marcos Antonio Zordan, presidente da Organização das Cooperativas do Estado de Santa Catarina (Ocesc), o foco principal do atual sistema produtivo comunitário é manter essas famílias no campo e abrir possibilidades para que seus herdeiros continuem no negócio. “Cooperativas como a Aurora Alimentos, que crescem e trazem oportunidades para os produtores, facilitam nossa tarefa”, diz Zordan. “Muitos filhos de agropecuaristas, mesmo com estudo na cidade, retornam ao campo para substituir seus pais, porque veem futuro no cooperativismo.”
Continuidade familiar – Os Balestrini, vizinhos dos Tischer na zona rural de Pinhalzinho, são um dos muitos exemplos da continuidade familiar na atividade. Silmara, filha de Elza e Oraldo Balestrini, depois de se casar com o produtor Roberto de Oliveira, chegou a viver durante dois anos numa cidade vizinha, ela trabalhando no comércio e ele numa fábrica. Há dez anos de volta à propriedade dos pais de Silmara, onde produzem 250 litros de leite por dia, o casal afirma que a vida da família está tranquila. A receita mensal de Silmara e Roberto é de R$ 10 mil, o triplo do que conseguiam na cidade. “No campo, tudo é mais fácil e sei que estou criando bem as minhas filhas”, diz Silmara, mãe de Dara, 11 anos, e de Lara, 4 anos. “Hoje, sei que posso ampliar ainda mais minha produção de leite e ganhar mais dinheiro”, diz Roberto. A certeza da possibilidade de empreender vem de sua própria experiência. Antes de se tornarem cooperados, Silmara e Roberto viviam com a renda de apenas 50 litros de leite por dia. “Naquela época, além de produzir pouco, sem a Aurora era difícil vender o leite”, diz Silmara. “Hoje, além de pagar bem pelo produto, a cooperativa é o nosso ponto de apoio e nos incentiva a usar novas tecnologias na propriedade.”
Silmara e o marido sabem que precisam ficar atentos ao futuro, porque hoje eles estão no olho de um furacão que vem mudando a maneira de as pessoas se relacionarem com o alimento. Todo consumidor quer saber o que come e de onde vem o que coloca na mesa. Para começar a participar dessa nova onda, a cooperativa implantou há cinco anos um sistema de rastreamento para o leite processado, inédito no mercado para os produtos longa vida. A produção do sítio de Silmara, assim como as de oito mil cooperados que entregam diariamente 1,3 milhão de litros de leite no laticínio, pode ser facilmente monitorada em tempo real com a ajuda de um código impresso na caixa Tetra Pak. Através de um computador, tablet ou smarphone conectados à internet, o consumidor pode checar detalhes da produção, como hora e temperatura em que o leite foi tirado da vaca, linha de envase, armazenamento e até o trajeto percorrido do laticínio ao ponto de varejo.
A nova tecnologia implantada pela Aurora tem levado a área de lácteos a um crescimento contínuo nos últimos anos. A coleta de leite nas propriedades cooperadas deve chegar a 500 milhões de litros nesta safra, volume equivalente à capacidade máxima do laticínio. No ano passado foram processados 482,6 milhões de litros de leite. Por conta disso, a pressão dos produtores por uma nova unidade já começou. “Mas estou tentando segurar esse investimento o máximo possível, até pelo menos 2017”, diz Lanznaster. “Depois disso teremos que ceder e construir mais uma unidade para processar outros 500 milhões de litros.” O investimento no novo lacticínio deve ficar em torno de R$ 200 milhões. O temor do presidente se justifica. Apesar do atual sucesso do leite rastreado, o moderno laticínio construído em 2008 foi um dos causadores dos apuros financeiros pelos quais a cooperativa passou, na segunda metade da última década. “Naquela época, faltando poucos dias para a inauguração, um incêndio acabou com a fábrica”, diz Lanznaster. “Além disso, a pecuária leiteira é um setor no qual se trabalha com uma margem de lucro bastante apertada.”
Acelerados – Ao contrário do leite, na suinocultura, o carro-chefe da cooperativa, a ordem é jogar a bola para a frente e apertar a marcação. No segmento de suínos, a Aurora Alimentos, que já possui oito unidades para abater e processar a carne de 16,5 mil porcos por dia, pretende expandir o abate para 20 mil. Atualmente, o volume já processado pela cooperativa catarinense representa 17% da produção nacional de suínos. Para sustentar o crescimento, serão investidos R$ 110 milhões na ampliação dos frigoríficos em operação nos municípios de Joaçaba (SC) e São Gabriel do Oeste (MS). Outros R$ 250 milhões serão gastos na compra de duas unidades que atualmente são arrendadas nos arredores de Chapecó. “Na maioria das vezes, arrendamos uma unidade e analisamos se dá certo”, diz Lanznaster. “Confirmado que é um bom investimento, compramos.”
As metas sempre arrojadas na área industrial acabaram fazendo da criação de suínos um bom investimento para os produtores Elza e Oraldo Balestrini, pais de Silmara, nos últimos 28 anos. Antes de se tornar cooperada, a família cultivava grãos e fumo, mas essas culturas não lhes davam retorno financeiro satisfatório. “Eu e meu marido trabalhávamos muito mais, e mesmo assim sempre deixávamos de pagar alguma conta no fim do mês”, diz Elza. “Quando entramos para a Aurora, os técnicos da cooperativa nos convenceram a mudar de área”, diz Oraldo. “A promessa foi de uma vida melhor.” Funcionou. Atualmente, a produção dos Balestrini é de 650 suínos por ano, que lhes dão uma renda de R$ 30 mil líquidos. Com vida ganha, Elza e Oraldo conseguiram dar estudos aos dois filhos: Silmara, a produtora de leite, e Alan, que cursou uma faculdade de educação física e hoje é dono de uma academia em Pinhalzinho.
Os produtores de aves também vêm jogando um bolão no time da Aurora. O abate atual de frangos, em torno de 800 mil por dia em seis frigoríficos, deve dobrar até 2020 para 540 milhões de animais por ano, o equivalente a 10% da atual produção nacional. Para alcançar a meta nesse segmento, a cooperativa estuda novos arrendamentos e compras de frigoríficos, que exigirão investimentos de R$ 500 milhões. “Muitas cooperativas paulistas têm nos procurado”, diz Lanznaster. Entretanto, a distância dessas cooperativas até a sede da Aurora e a falta de incentivos fiscais em São Paulo têm dificultado as negociações. Por isso, a localização das novas unidades deve contemplar o Rio Grande do Sul ou o Paraná, locais em que as regras do jogo de mercado já são conhecidas pela Aurora. Até agora, certo mesmo é a decisão de investir. “A área de frangos tem crescido muito nos últimos anos, a taxas de até 25%”, diz Lanznaster. “Nossos cooperados sabem que o setor tem futuro.”
Globalização – Para a Aurora, contar com o entusiasmo e a confiança de seus associados é vital para pôr de pé seus planos ambiciosos de expansão geográfica. Em seu radar, figuram três objetivos centrais: expandir a produção para o Nordeste, para ampliar sua presença no País, acelerar as exportações e construir uma unidade industrial no Exterior. No caso do Nordeste, Lanznaster estuda a compra de um frigorífico para processar suínos, aves e lácteos, nos arredores de Recife, a capital pernambucana. Segundo ele, as negociações vêm sendo feitas com uma empresa que atualmente se encontra em recuperação judicial. O negócio é da ordem de R$ 150 milhões. Mas o plano, nesse caso, não é de replicar o sistema de fornecedores cooperados na região, a exemplo do que ocorre no Sul do País. Nesse caso, a Aurora planeja levar por via marítima a matéria-prima, que seria embarcada do Sul, no porto de Itajaí, em Santa Catarina, e descarregada no de Suape, em Pernambuco. “Ainda hoje não temos uma boa distribuição de nossos produtos no Nordeste, uma região em que o consumo cresce aceleradamente”, diz Lanznaster. “Uma unidade industrial na região seria um bom negócio para a Aurora.”
No front externo, os planos são ainda mais ambiciosos. Para Lanznaster, o mercado japonês de suínos, aberto no fim do ano passado, deve ganhar musculatura a partir deste ano. A meta para 2014 é embarcar mil toneladas de produtos industrializados para o Japão, ante 100 toneladas no ano passado. Até junho, a cooperativa já havia exportado 400 toneladas, volume praticamente igual ao que o Brasil vendeu ao país do sol nascente em 2013. “Estamos nos tornando os maiores exportadores de suínos para os japoneses”, diz Lanznaster. “O segundo maior exportador brasileiro não venderá nem 30% do que estamos colocando lá fora.” Para 2015, a cooperativa espera vender no mercado japonês 2,6 mil toneladas de carne suína in natura, volume equivalente a 1% das 260 mil toneladas exportadas para cerca de 60 países pela Aurora. Mas nem sempre foi assim. Para chegar a esse volume, a empresa catarinense teve de suar a camisa. No ano passado, as exportações totalizaram R$ 1,55 bilhão, representando cerca de 19% de sua receita total. Desse montante, os cortes de aves responderam por 50% e os de suínos, por 20%. Além de exportar os produtos saídos de seus frigoríficos brasileiros, a Aurora Alimentos, que no ano passado ficou em primeiro lugar na categoria Gestão de Cadeia Produtiva no ranking AS MELHORES DA DINHEIRO RURAL, quer iniciar uma operação industrial própria lá fora. Lanznaster acredita que algum país nos continentes asiático ou africano pode ser uma boa escolha para construir uma unidade industrial fora do Brasil. “Temos visto muitas cooperativas brasileiras abrindo fábricas nesses continentes”, afirma. “Se elas podem, a Aurora também pode.” Lanznaster já conversou em três ocasiões com representantes do governo chinês e empresários locais sobre essa possibilidade. Mas o executivo se mostra mais otimista quando cita África do Sul, Marrocos ou Angola, países que já possuem uma boa produção de grãos, o que facilitaria a criação local de suínos e aves. “Neste mês, vou à África mais uma vez, para conversar com produtores, cooperativas e algumas autoridades”, diz Lanznaster. “Se achar que pode dar certo, antes de 2020 já estaremos lá.” Juntando todos os projetos em andamento, e aqueles ainda no papel, a Aurora Alimentos deve investir mais de R$ 1,2 bilhão até 2020.
Reunidos em uma propriedade para fazer a foto que abre esta reportagem da DINHEIRO RURAL, Lanznaster e as famílias Tischer e Balestrini pareciam à vontade quando questionadas sobre os rumo da cooperativa. “Estamos no jogo para jogar e até agora os gols vêm saindo”, diz Lanznaster. Sobre o futuro, Milania e José Tischer só pensam em uma coisa: pegar a estrada e conhecer o Brasil a bordo de um carro novo. “Nossos filhos vão tocar o negócio”, diz Milania. Mas, antes disso, o casal irá investir mais R$ 320 mil para ampliar os aviários de 100 metros quadrados para 150 metros quadrados e dobrar a produção de frangos para 150 mil animais por ano. Já Oraldo Balestrini contenta-se com menos. Ele conta que sua maior felicidade é se sentar à frente da televisão, aparelho que só conheceu depois de uma década de casado e já como cooperado da Aurora Alimentos. Seu passatempo preferido é assistir a partidas de futebol. Em dia de jogo do time da região no Brasileirão, o sítio fica em polvorosa e o que mais se ouve é “vai Chapecoense”. “Na época do meu pai, ter televisão era coisa para rico”, diz Balestrini. “Imagine, então, ter uma televisão de tela grande e ver a Chapecoense na Primeira Divisão? Isso é demais.”