30/09/2013 - 11:56
Do alto do nono andar de um prédio de grandes janelas com vista para a marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, o economista e criador de gado, Ovídio Carlos de Brito, 66 anos, tenta puxar da memória o ano em que seu pai, Ovídio Miranda Brito, ainda como peão de fazenda em Minas Gerais, começou a vender touros no Sul do país. “Acho que foi lá pela década de 1940 que ele fazia tropas de touros, embarcava esses animais em um vagão de trem, em Uberaba, e desembarcava em Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul”, diz Brito. “De Santa Maria, meu pai saía por todo o Estado oferecendo seus animais aos fazendeiros gaúchos. Assim ele começou a ser pecuarista.” Com as lições aprendidas desde o berço com o pai, que chegou a ser conhecido como o “Rei do Gado”, Brito, atualmente na presidência do conselho de administração do Grupo OB, proprietário de fazendas em pontes e Lacerda, em Mato Grosso, comanda um negócio que se tornou o maior do país na venda de reprodutores de raças bovinas, destinados a cobrir vacas em rebanhos focados na produção de carne.
No Brasil, nenhum projeto de pecuária vende mais touros que o Grupo OB. Nos últimos dez anos, a média tem ficado próxima de 2,5 mil animais das raças Nelore Mocho e Brahman por safra. “O Nelore mocho, sem chifres desde o nascimento, foi uma invenção de meu pai no final da década de 1950”, diz Brito. Neste ano, estão indo à venda 2,6 mil touros que Brito espera vender por um preço equivalente a pelo menos 45 arrobas de boi gordo cada um (cerca de r$ 5 mil), o que daria, em valores atuais, cerca de R$ 13 milhões. Além dos touros, o grupo é dono de seringais em Mato Grosso, na região das fazendas de gado – são mais de um milhão de árvores em produção –, e de palma no Pará, em 15 mil hectares destinados à produção de óleo para a indústria alimentícia. “Investir em touro é colocar qualidade na mesa do consumidor”, diz Brito. “Mas para fazer um bom animal é preciso ciência, tecnologia e perseverança, já dizia o meu pai.”
Atualmente, dá para contar nos dedos de uma única mão, com sobra, o número de pecuaristas que conseguem vender acima de mil touros por ano no País. Todos os quatro existentes são criadores de gado Nelore e dois, também, criadores de Brahman. Além do grupo OB, faz parte desse seleto time a CFM Agro-Pecuária, do grupo inglês Vestey, que tem como presidente de seu conselho de administração o lord inglês Samuel Vestey, com fazenda em São Paulo e na Bahia. E os irmãos Alexandre e Pedro Grendene, ambos empresários da indústria calçadista, donos da Vulcabras e da Grendene. A agropecuária Jacarezinho, de Alexandre, também está presente no interior paulista e no baiano e a agropecuária Grendene, de Pedro, tem fazendas em Mato Grosso e São Paulo.
No próximo ano, dois outros pecuaristas devem entrar nesse time. Carlos Viacava, executivo do grupo Cutrale, com criação no interior paulista, investiu pesado na seleção de reprodutores nos últimos anos e está vendendo nesta temporada cerca de 900 animais. “A partir de 2014 garanto que vamos passar de mil”, diz Viacava. O outro candidato é Maurício Odebrecht, um dos herdeiros do grupo Odebrecht, e dono, junto com o pai, Emílio Odebrecht, e o irmão Marcelo, da Eao agropecuária. A fazenda está localizada em Itagibá, na Bahia, onde a Eao faz seleção de Nelore e Brahman em uma área de seis mil hectares. “O grupo vem se preparando há alguns anos para produzir touros em escala”, diz o empresário Paulo Horto, dono da Leiloeira Programa, de Londrina (PR), responsável pela maior parte do comércio de animais vendidos nos leilões dos Odebrecht.
O mercado potencial de touros destinados aos rebanhos comerciais é de R$ 2,3 bilhões por ano no País. O preço de cada animal é simples de ser calculado. Raramente um pecuarista que cria gado para ser abatido nos frigoríficos compra um touro por cotações muito acima do preço equivalente a três bois gordos, a menos que seja um reprodutor top de seleção para as centrais de inseminação artificial ou para multiplicar os próprios rebanhos de seleção. No Brasil, o rebanho de touros comerciais é estimado em 2,2 milhões de animais. Como o ideal em um projeto de gado de corte é substituir 20% dos touros, por ano, para que no ciclo de uma década todo o plantel seja trocado, a necessidade do País é de 450 mil animais por safra. Essa receita é dada por qualquer veterinário, mas na prática não é isso que ocorre. Não há no Brasil uma quantidade assim tão grande de animais superiores. A maior parte do que existe é de touro de ponta de boiada, aquele que o criador de gado comercial pega em seu próprio rebanho como reprodutor e que na maioria das vezes não tem qualidade genética. O veterinário José Bento Sterman Ferraz, professor do departamento de genética e melhoramento animal da Faculdade de Zootecnia e engenharia de alimentos da USP, de Pirassununga (SP), acredita que o mercado oferte apenas 18 mil touros de alta qualidade por ano. Esses animais seriam aqueles criados nos rebanhos que identificam seus produtos através do Certificado especial de identificação e Produção (CEIP), concedido pelo ministério da agricultura somente a 30% dos melhores animais de um rebanho. “É preciso ficar atento às necessidades da pecuária nacional”, diz Ferraz, que tem pós-doutorado em reprodução animal na Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos. Já para o professor da Faculdade de Zootecnia e Veterinária de Uberaba (MG), luiz Antonio Josahkian, superintendente técnico da associação brasileira dos Criadores de Zebu, é muito difícil calcular a quantidade de touros superiores vendidos no País, levando em conta todos os programas de seleção, como os das universidades e associações de criadores, porque não há uma entidade que acompanhe esse mercado. “Contudo, posso dizer que estamos a léguas de atender a demanda se considerarmos uma pecuária idealizada”, afirma Josahkian.
?Há quem se arrisque a dizer que o plantel de touros melhorados está próximo de 50 mil a cada safra. Entre eles, o administrador húngaro Joseph Purgly, conselheiro do Programa DeltaGen, que reúne 26 fazendas e cerca de 400 mil animais avaliados. “A pecuária brasileira melhorou muito nas últimas décadas, impulsionada por uma nova geração de pecuaristas que vem tomando conta dos negócios”, diz. Dos 2,6 mil touros comercializados por Brito, da OB, por exemplo, 400 são vendidos em leilões. O Grupo OB foi o primeiro no País a transmitir um leilão de touros pela televisão em 1994, numa época em que existia apenas o Canal do boi, de Campo Grande (MS), como mídia especializada no setor e que transmitia apenas leilão de gado para abate. Hoje, o espaço é dividido com a Rede Bandeirantes, dona do canal Terraviva, e com o Canal Rural, comprado neste ano pela J&F, holding que controla o grupo JBS. Na agenda das tevês, não há um único dia no ano sem leilões via satélite. “A televisão mudou o jeito de vender gado, mas ainda não é o único meio de vender touros”, diz Brito. Para ele, vale o velho e bom relacionamento, “Para chegar no pequeno e médio pecuarista, é preciso ir atrás deles”, diz Brito. “Esse público ainda tem dificuldade em acessar compras via satélite.”
No ano passado, Brito lançou na região de Pontes e Lacerda o programa Porteira a Porteira, destinado a vender parte de seus touros comerciais. “Estou reeditando um modelo parecido com o de meu pai no sul do País”. Para exibir os produtos da fazenda, um funcionário munido de com um tablet, no qual estão estampados os touros à venda, sai pela região mostrando o gado. Aos interessados, é marcado um dia de visita à fazenda para o fechamento do negócio. “Acho que ainda falta muita compreensão do pecuarista para que ele enxergue de onde pode vir seu lucro”, diz Brito. Segundo ele, o que importa em um rebanho de criação é a quantidade de quilos de bezerro nascidos e desmamados por hectare ao ano, o que se pode obter com a genética melhorada, aliada a um bom pasto. “A pecuária deve copiar a agricultura, como na soja ou no milho, em que as contas são feitas em quilos de grãos por hectare”, diz.
Com exceção do Grupo OB, os outros três vendedores do pelotão de frente do comércio de touros têm a mesma raiz genética: o trabalho desenvolvido pela CFM agropecuária desde a década de 1980. O Grupo Vestey, dono da CFM, chegou ao Brasil em 1908 para investir no setor de carne, com a instalação do frigorífico Anglo, cuja carne era exportada para a Inglaterra para abastecer a família real. Até hoje, os membros da família Vestey, donos de empresas de importação de alimentos em mais de 70 países, são frequentadores assíduos do Palácio de Buckingham. Lord Samuel Vestey, presidente do conselho de administração do grupo, é amigo pessoal da Rainha Elizabeth. No Brasil, o grupo CFM é responsável pelo maior programa de animais com CEIP. São 17 mil fêmeas na base de seleção, com produção de dois mil touros para serem vendidos neste ano. A barreira dos mil animais foi quebrada em 1997. Em 2001, foi rompida a de dois mil e o projeto é que as vendas permaneçam nesta faixa daqui para a frente.
Lord Vestey, que vem ao Brasil uma vez por ano, compareceu no dia 15 de agosto a um leilão em são José do Rio Preto (SP),promovido pela CFM. No dia seguinte ele esteve na fazenda São Francisco, em Magda, município a 90 quilômetros dali, onde as vendas continuaram. Ao todo, a CFM vendeu nos dois eventos 615 touros, que renderam R$ 3,5 milhões. O recorde foi batido por um touro arrematado em conjunto por dois criadores e pela central de inseminação Alta Genetics, de Uberaba, cujo preço chegou a R$ 142. No dia do leilão, Vestey – que não concede entrevistas e raramente se deixa fotografar – passeava por entre as mesas espalhadas pelo recinto e pelas baias onde estavam os touros à espera para entrar na pista de vendas. De vez em quando, puxava conversa com algum comprador. “Conheci Lord Vestey hoje”, disse o pecuarista Edson Crochiquia, dono de três fazendas que somam 25 mil hectares em Mato Grosso e São Paulo. Croquichia compra touros da CFM desde 1995, e já levou para casa 200 animais. “Ele me agradeceu por eu ser um comprador fiel em seus leilões.” O criador, que abate dez mil animais por ano em unidades dos frigoríficos JBS e Frigol, consegue um adicional de até 10% no preço da arroba do boi gordo. “Isso mostra que o investimentos em touros melhoradores dá retorno”, diz Croquichia.
Outro convidado efusivamente abordado por Lord Vestey foi Manoel Lobato, pecuarista em Parintins, no Amazonas. Há 15 anos, lobato também é um assíduo frequentador dos leilões da CFM. “É uma viagem de negócios na qual podemos aprender muito”, diz. Além de comprar touros e fêmeas Nelore para o próprio rebanho, o criador costuma levar encomendas. “Já comprei para mim e para os amigos pelo menos mil touros da CFM”, diz Lobato. Antigamente, lembra, ele chegava a levar três semanas para transportar os touros da fazenda da CFM até Parintins, distantes 3,5 mil quilômetros uma da outra. Hoje, são necessários sete dias. “De qualquer modo, esse esforço vale a pena porque o resultado é garantido”, afirma Lobato. Por isso volto sempre.” Atualmente, toda a base do rebanho de Lobato, de cinco mil animais, é de genética CFM.
Foi o húngaro Joseph Purgly, o conselheiro da DeltaGen, que começou a desenvolver para Lord Vestey o trabalho de seleção da CFM, em São Paulo, na década de 1980. Em 2007, a empresa inglesa investiu US$ 10 milhões para transferir o rebanho ao oeste da Bahia e reservar as terras das fazendas paulistas para a cana-de-açúcar e o confinamento de gado. Na Bahia, o grupo cria 17 mil vacas de seleção, monitoradas pelo zooctecnista Luiz Adriano Teixeira, gerente de pecuária, e pelo agrônomo Geraldo José de Toledo Martins, diretor geral e principal executivo da CFM no País. Para Martins, os leilões de touros atuais são eventos em que o conhecimento é a principal arma do comprador. “É difícil um convidado que venha ao leilão sem saber o que é um touro com CEIP”, diz. “O acesso ao conhecimento tem modificado o modo de se olhar para uma pista de leilão, ou mesmo comprar diretamenta na fazenda”, diz Teixeira. Para Purgly, os touros são a categoria animal dentro de uma fazendao que apresenta o maior impacto na evolução genética do rebanho. A conta é simples: enquanto uma vaca pode ter apenas um filho por safra, um touro tem entre 25 e 50 filhos em regime de monta natural, processo que pode ser acelerado se for utilizada a inseminação artificial. “É tão básico esse conceito, mas ainda necessita ser passado para a frente”, diz Purgly. Brito, do Grupo OB, vai mais longe. “O uso de touros melhoradores ajuda a diminuir a idade de abate dos animais e aumentar a taxa de desfrute do rebanho”, diz. Ele aponta o exemplo dos Estados Unidos, onde o investimento em genética sempre foi grande. “Eles têm um rebanho 55% menor que o brasileiro, mas produzem 25% a mais de carne”, afirma.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o País possui um rebanho de 212 milhões de bovinos. Desde 2006, a quantidade de animais nos pastos aumentou quase 7%. Mas a quantidade de carne produzida ainda não rompeu a barreira dos dez milhões de toneladas, enquanto nos Estados Unidos ela já chegou aos 12 milhões há quase uma década. Para o inglês Ian Hill, economista e administrador rural que também começou a carreira na CFM e hoje é diretor da agropecuária Jacarezinho, do empresário Alexandre Grendene, o salto rápido e quantitativo na oferta de touros melhoradores, daqui para a frente, está ligado à intensificação do uso de tecnologia. “As mais importantes são aquelas sobre o conhecimento de como o DNA, o gene do animal, intefere na sua qualidade reprodutiva”, diz. “Mas o touro precisa continuar sendo um produto barato para o criador de gado comercial, como é hoje.” Atualmente, Alexandre Grendene tem 45 mil hectares e 11 mil fêmeas Nelore no oeste da Bahia, além de um ponto de vendas no município paulista de Valparaíso. A produção de 8,5 mil bezerros por ano resultou nesta temporada em 1,5 mil touros com CEIP, ante 1,1 mil no ano passado. “Para os próximos anos, o projeto da Jacarezinho é vender cinco mil touros avaliados e provados em testes de campo que já realizamos normalmente, além de testes genômicos e econômicos”, diz Hill. “Estamos entrando em uma nova era para a pecuária, que vai andar mais rápido do que foi até agora.”
Há dois meses, Hill esteve na Austrália para uma visita à Universidade de Queensland, instituição eleita entre as cinco melhores para pesquisa no país e a primeira em estudos genômicos de animais destinados à produção de carne. Também esteve com executivos da empresa Breeplan, especializada em tecnologias reprodutivas. Até o final deste mês serão os australianos que estarão no Brasil para uma visita a Jacarezinho. “Para ir em frente precisamos melhorar nosso banco de informações sobre o rebanho”, diz Hill. Segundo ele, a carga genética de animais como a do touro Kulal, o mais importante da história da Jacarezinho e que goza da merecida aposentadoria, poderá ser mais precisa e segura com o avanço dos testes para mapear os genes do animal e correlacioná-los com os resultados dos programas de melhoramento tradicionais. Prolífico, Kulal é o único zebu do mundo que tem a produção de 28 mil filhos avaliados em um mesmo programa de melhoramento e já vendeu 400 mil doses de sêmen.
O caçula da turma dos vendedores dos mil touros, Pedro Grendene, dono da agropecuária Grendene, apesar de ter entrado no grupo neste ano, já criava nelore de elite desde a década de 1980, no interior paulista. A intensificação de sua seleção de campo começou em 2006, quando os irmãos Pedro e Alexandre dividiram o grupo de suas empresas de calçados. Também foi naquele ano que os animais começaram a ser avaliados pelo programa de melhoramento genético Nelore Brasil, coordenado pelo professor Raysildo Lobo, da USP de Ribeirão Preto (SP). No dia 31 de agosto, Pedro realizou um dia de campo para mostrar a produção da fazenda Ressaca, de Cáceres, em Mato Grosso, e no dia seguinte colocou a tourada Nelore na pista de leilão para ser vendida. A primeira batida do martelo começou logo depois do almoço. “Acredito que o Nelore é a grande raça da pecuária brasileira”, diz Pedro.