No início da pandemia do novo coronavírus, uma ação julgada em Brasília determinou que planos de saúde fossem obrigados a prestar atendimento de urgência e emergência a todos os pacientes, independente do prazo de carência previsto em contrato. Se fosse considerar ao pé da letra o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública, a decisão valeria apenas para o lugar em que foi proferida: ou seja, na capital do País. Mas uma ação coletiva proposta pela Defensoria Pública do Distrito Federal garantiu que a regra valesse para qualquer brasileiro.

A abrangência territorial das chamadas Ações Civis Públicas (ACP), meio processual de defesa de interesses da sociedade, ainda não é consenso na Justiça, apesar do caso de Brasília. O tema vem sendo alvo de discussões há pelo menos duas décadas, segundo analistas ouvidos pelo Estadão. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) mostrou disposição em dar um basta no assunto e responder se decisões acerca de ações coletivas têm alcance nacional ou se estão limitadas ao Estado onde foram julgadas. Um julgamento chegou a ser pautado para o último dia 16, mas foi adiado.

Hoje, há 438 mil ações coletivas registradas no Cadastro Nacional de Ações Coletivas (Cacol), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Se a Corte entender que as decisões valem para todo o território nacional, esse número teria uma redução “drástica”, já que não haveria necessidade de análise de ações autônomas, diz João Paulo Carvalho, defensor público e coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor. “O principal efeito nacional é a agilidade, a celeridade no cumprimento da decisão. O direito já estaria reconhecido. Nos Estados, podemos nos beneficiar daquela decisão e apenas pedir o cumprimento.”

O caso dos planos de saúde é de abril deste ano, mês em que o País bateu a marca das 400 mortes diárias por coronavírus. Na prática, a ideia de dar abrangência nacional à decisão evitaria que ações sobre o mesmo tema fossem julgadas em outros Estados e tivessem resultados divergentes em outros tribunais – embora os consumidores tenham os mesmos direitos. A questão foi que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu, em março deste ano, todos os processos que discutiam a abrangência do limite territorial para as decisões proferidas em ação civil pública, já que o Supremo ainda vai dar seu parecer sobre o assunto.

Modelo

A tese que seria discutida pela Corte tem origem em uma outra ação, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) contra 16 instituições financeiras. Nela, o Idec questiona a cláusula de um modelo de contrato do Sistema Financeiro Habitacional e pede a nulidade de todos os contratos, independente de localização, já que se tratava de consumidores de diferentes Estados do País.

Quando se discutia a liminar, houve uma decisão no processo tratando sobre abrangência territorial. O TRF3 decidiu pela abrangência nacional, mas os bancos recorreram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A 3ª Turma do STJ aplicou o artigo 16 para limitar a abrangência, e o Idec foi à Corte Especial do STJ, que decidiu pelo alcance nacional. Foi essa última decisão que justificou a interposição de um recurso extraordinário para o STF.

“Como já definiu o Supremo Tribunal Federal, há no processo uma importante questão constitucional a ser decidida: se o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública é ou não compatível com a Constituição”, diz Fábio Quintas, advogado que atua no recurso extraordinário representando o Itaú e o Santander.

Para ele, não é correto dizer que a norma destrói o processo coletivo no Brasil. “O artigo 16 está em vigência plena desde 1997, até a mudança de entendimento do STJ. Acho que ninguém pode dizer que o processo coletivo no Brasil se perdeu nesse período por conta dessa regra.” Segundo o advogado, dizer que a lei é inconstitucional significa trazer insegurança jurídica, já que ela orientou a conduta de todos durante pelo menos 15 anos.

Exceção

Advogado do Idec em Brasília, Walter Moura afirma que a ação civil pública que trata problemas nacionais com uma só sentença concentra e otimiza a solução. Ele justifica que o instituto pediu âmbito nacional à sentença porque a atuação dos bancos tem abrangência nacional. “As sentenças coletivas devem se restringir ao local onde elas são proferidas, que é defendido do lado contrário. Mas comporta exceções, em hipóteses em que o dano é coletivo, como foi o caso”, afirmou.

Os que defendem a limitação geográfica justificam que não faria sentido dar a um juiz de primeiro grau o poder de decidir para todo o País. Seria como esvaziar o poder dos tribunais superiores.

Professor de direito Tributário, Administrativo e Constitucional, Rubens Ferreira Jr. afirmou que o que está em jogo não são direitos individualmente considerados, mas sim, de interesses difusos e coletivos. “A jurisdição é una, ou seja, estando adequados os sujeitos do processo (autor e réu), o juiz não só pode como deve decidir de forma ampla, a não ser que consideremos que a instituição financeira seja fragmentada em diversos polos unitários, configurando empresas diversas.”

Para ele, as instituições financeiras têm interesse em limitar as decisões aos Estados pois, caso o STF mantenha o entendimento do STJ, uma só decisão já é suficiente para que todas as pessoas lesadas do País executem a sentença, sem necessidade de processo. “É um ‘cheque’ do consumidor contra os bancos.”

Em nota, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) diz que a lei é clara ao estabelecer que a abrangência dos efeitos da Ação Civil Pública é restrita aos limites da competência territorial do órgão que profere a sentença da decisão.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.