09/02/2021 - 12:04
Bacco que se cuide, pois se depender dos produtores brasileiros, até o deus grego trocará o vinho pela cachaça – uma bebida sem origem muito precisa, mas que remonta aos tempos de colonização, quando os portugueses trouxeram a cana-de-açúcar para o Brasil e os escravos produziam o licor. Desde então, ganhou popularidade. Mas até agora de um jeito meio pejorativo, qualificando o homem cambaleante na porta do bar após tomar umas doses em exagero, o cachaceiro. Essa história está prestes a mudar. O desafio em curso é colocá-la nos patamares das bebidas típicas mais bem conceituadas do mundo, como o saquê, a grappa e o próprio uísqui. Afinal, além de ser o primeiro destilado das Américas, é considerada patrimônio nacional. Diz a legislação: “cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de 38% a 48%, obtida pela destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo ser adicionada de açúcares em até 6 gramas por litro, expressos em sacarose”. Qualquer coisa diferente disso não é cachaça, ponto final. “Precisamos começar a enaltecer a nossa bebida, o produto mais brasileiro entre todos”, afirmou Leandro Dias, empreendedor e criador da Middas, a única com flocos de ouro 23K.
Para alcançar a almejada premiunização, o setor tem percorrido jornada semelhante ao do café com programas para aumentar a exportação, além de concursos para premiar as melhores garrafas. No ano passado, em mais uma reunião da Cúpula da Cachaça, a Companheira Envelhecida 8 Anos, produzida no Paraná, foi campeã absoluta com 90,63 pontos do total de 100. Uma história que começou quando o engenheiro químico Natanael Carli Bonicontro produziu sua primeira garrafa durante uma aula de engenharia bioquímica ainda na faculdade. Ali, se apaixonou e não parou mais. Começou a plantar cana-de-açúcar, construiu um alambique em Jandaia do Sul, no norte do estado, e escolheu o nome da marca: Cachaça Companheira é uma homenagem ao joão-de-barro, pássaro que passa toda a sua vida ao lado de única companheira. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Esse é o espírito da cachaça. Cada rótulo tem uma história. A da Weber Haus começou em 1824, ano em que a família alemã chegou ao Sul do Brasil. Nas encostas da Serra Gaúcha, começaram a produzir um destilado comum no país de origem, o ‘schnaps’, feito de batata inglesa. Em 1848, trocaram a batata por cana. Durante mais de um século, as garrafas da então Cachaça Primavera seguiam o padrão do mercado: envasadas em embalagens escuras com um rótulo sem refinamento e destinada ao consumo regional. A virada aconteceu nos anos 2000 como resultado de uma adversidade. “Um dia um advogado bateu na nossa porta e falou que a marca era de uma empresa de São Paulo. Fui dormir sem saber o destino do nosso produto e acordei com um nome e um novo projeto”, disse Evandro Weber, diretor da empresa. Era o empurrão que precisava para reinventar o negócio. Rebatizou o produto com o nome da família – Weber Haus, em tradução livre significa Casa dos Weber – refinou o rótulo, sofisticou a embalagem e reposicionou o produto nos mercados nacional e internacional. Atualmente, a garrafa premium é envelhecida por 12 anos, sendo seis em barricas de carvalho francês e outros seis em bálsamo, e custa R$ 2.699,00. Em restaurantes como a rede Fogo de Chão, nos Estados Unidos, uma dose chega a US$ 125.
Assim como o café e o vinho, a branquinha tem relação íntima com seu local de origem e modo de produção. A começar pela alcunha de branquinha, já que a bebida só é transparente quando produzida em recipientes de inox. As amareladas ganham o tom e o sabor de acordo com os barris em que são envelhecidas. Fundada pelo excêntrico Antonio Rodrigues e instalada na cidade mineira de Salinas, a família Seleta une os títulos de ser produzida pelo Rei da Cachaça, na Capital Mundial da Cachaça – Selo de Indicação Geográfica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), conferido em 2012. O portfólio é composto por sabores marcados por envelhecimento em tonéis de inox e de madeiras como umburana, bálsamo, jequitibá, ipê e carvalho. A mais premium delas leva o nome do fundador e passa sete anos descansando no carvalho francês. “Estamos vivendo uma mudança de hábito, com o brasileiro passando a valorizar o sabor e qualidade da bebida. Hoje o público que toma a Antônio Rodrigues é quem aprecia um bom uísque”, afirmou Gilberto Luiz, CEO da Seleta.
INOVAÇÃO Foi durante o período em que morava no Canadá que Leonardo Dias teve a ideia de criar uma cachaça que materializasse o valor que o produto tem, ao trazer flocos de ouro em seu líquido. Quando adquire o produto, majoritariamente vendido pelo e-commerce da marca, o consumidor recebe a garrafa da bebida e um frasco com os flocos 23k importados da Alemanha. Cabe a ele misturar os dois. “Tornamos a degustação uma experiência interativa em que o manuseio do ouro tem uma força simbólica muito grande”. Em sua versão mais premium, batizada de Reserva dos Proprietários, o líquido é envelhecido em um processo único que gera lote de mil garrafas por ano. Em 2020, o envelhecimento aconteceu por cinco anos, em cinco diferentes tonéis: carvalho americano, castanheira, jatobá, acácia e umburana. “Todos os anos, mudamos o blend, conferindo sabores a serem degustados e colecionados por quem gosta de uma bebida saborosa e bem feita”, disse. Uma garrafa da Middas tradicional vale mais de R$ 320, já a edição especial ultrapassa os R$ 430.
Aguardente de cacau
“Toda cachaça é aguardente, mas nem toda aguardente é cachaça”, assim começou a conversa com André Scapini que criou, em Linhares (ES), a primeira aguardente de cacau do Brasil. A iniciativa surgiu após o empreendedor acompanhar o dilema da família da esposa: produtores tradicionais, queriam agregar mais valor ao fruto, já que somente a castanha é usada pela indústria do chocolate. Toda a polpa era jogada fora. Assim, depois de muito estudo, em novembro de 2020, lançou a Cacahuatl. Em cerca de 30 dias, 1,5 mil litros do produto foram comercializados. “É um sabor diferente de qualquer bebida que se tenha provado e ainda é sustentável, já que usa como matéria-prima um insumo que era descartado”, disse Scapini. Os planos agora passam pelo aumento do mercado interno e até exportação. O teor alcoólico é de 40% e o preço, R$ 190.