12/03/2021 - 16:21
Em agosto de 1972, o ferramenteiro Antonio Torini, então funcionário da Volkswagen, foi preso na sede da montadora e levado ao Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) de São Paulo, onde passou 49 dias sob tortura. Dois anos depois, ao ser julgado pelo Superior Tribunal Militar, acabou condenado a mais dois anos de detenção. Sua mulher, Livonete, ficou sozinha com os filhos.
Após cumprir a pena, Torini foi libertado, mas foi condenado ao desemprego permanente. Isso porque passou a constar nas ‘listas sujas’ trocadas pela Volkswagen com empregadores – a montadora alemã fechou um acordo de reparação de R$ 36 milhões pelo apoio aos porões da ditadura. O ferramenteiro, que militava no Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP), morreu em 1998 com problemas de saúde.
Em novembro do ano passado, a Justiça de São Paulo decidiu que a União deveria pagar uma indenização de R$ 150 mil aos Torini. A decisão do juiz José Denilson Branco, da 3ª Vara Federal de Santo André, atende a um pedido da viúva.
Na sentença, o juiz considerou que a União deve ser responsabilizada pelo dano moral extrapatrimonial causado à família por agentes públicos no exercício da função e em nome do Estado. A Comissão de Anistia já havia se manifestado favorável ao pagamento em resposta a um requerimento apresentado pelo próprio Antonio antes de sua morte.
“O dano em questão é aquele que atingiu a esfera íntima da autora e seu falecido marido, seu sofrimento, sua humilhação”, escreveu o magistrado.
O caso foi levado ao Tribunal Regional da 3ª Região (TRF-3ª), em São Paulo, pela viúva. Ela pedia o aumento da indenização para R$ 300 mil. O desfecho do caso na Sexta Turma da Corte foi em sentido oposto: os desembargadores Johonsom Di Salvo, Diva Malerbi, Toru Yamamoto e Souza Ribeiro decidiram anular a sentença de primeira instância e, assim, derrubaram a condenação imposta à União.
O colegiado seguiu o entendimento do relator Johonsom Di Salvo. Em seu voto, o desembargador classifica como ‘criminosas’ as condutas de Torini por considerar que o militante de esquerda estava associado a movimentos e partidos defensores da ‘ditadura do proletariado’ e de uma organização política empenhada em implantar um ‘governo comunista’ no Brasil e ‘subverter o regime vigente’.
“Está claro que Antonio Torini colocou-se, ativamente, contra a ordem então vigente e que suas ações e condutas amoldavam-se a delitos previstos pela legislação que – mal ou bem – representava o direito repressivo vigente. Portanto, para a época, as condutas de Torini eram criminosas (subversivas), eram investigadas pelo DOPS, sujeitavam seus autores a prisão com incomunicabilidade e a denúncia pelo Ministério Público Militar, com julgamento pela Justiça Militar da União”, escreveu o desembargador.
Na prática, o magistrado decidiu julgar Antonio Torini a partir do ordenamento jurídico vigente durante a ditadura militar no Brasil. Na avaliação do desembargador, a prisão e o banimento sofridos pelo ferramenteiro foram ‘consequências jurídicas de seus atos que tendiam à implantação de uma ditadura comunista no Brasil’.
“Não há espaço para indenização do agente dessas condutas a ser paga, via judicial, pela União, eis que o infrator das leis vigentes era Antonio Torini, vinculado a movimentos e partidos defensores da ditadura do proletariado. Dessa maneira, não se pode indenizar a suposta “dor moral” de quem se submeteu aos rigores das leis vigentes pela própria vontade consciente, sabendo que infringia a legislação penal da época, onde a investigação, o processo e o julgamento eram as consequências legais, sem falar nas consequências da condenação penal”, considerou.
Di Salvo ainda coloca sob suspeita que Antonio Torini tenha sido de fato torturado. Embora os advogados da família tenham reunido um acervo documental de milhares de páginas indicando, por exemplo, que o ferramenteiro passou quase dois meses nos porões da ditadura sendo interrogado pelo delegado Affonso Celso de Lima Acra, um dos ‘notórios torturadores’ do regime militar, o desembargador considerou que não há provas dos abusos.
“Se a viúva e os filhos de Antonio Torini desejam ser indenizados porque há mais de quarenta anos o marido e pai foi torturado, deveriam apresentar um mínimo de prova a respeito, não bastando juntar enxurrada de documentos que demonstram somente que o mesmo foi processado e preso porque conspirava contra a ordem jurídica vigente, intentando implantar o comunismo no Brasil”, escreveu Di Salvo.
O magistrado também classificou como ‘tardio’ o pedido de reparação formalizado pela família. Pela jurisprudência firmada no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, ações desta natureza são imprescritíveis. O caminho turbulento percorrido pelo Brasil para jogar luz aos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, acelerado somente a partir dos trabalhos da Comissão da Verdade, contribuiu para que a Justiça deixasse de estabelecer um marco temporal para prescrição dos processos abertos pelas vítimas do regime militar. O País também é signatário de tratados internacionais de direitos humanos, como o Pacto São José da Costa Rica, que reforçam a disposição para reparar os abusos do período de exceção.
“O Judiciário não é guiado por decisões administrativas, de modo que para fins de concessão da pretendida indenização – tardiamente cogitada pela viúva e os filhos de Antonio Torini – o quanto decidido pela Comissão da Anistia não manieta o livre convencimento do Juiz”, escreveu o desembargador.
Procurados, os advogados Bruno Luis Talpai e Victor de Almeida Pessoa, que representam os Torini, informaram que estão preparando recursos na tentativa de reverter a decisão. “O Poder Judiciário não pode referendar os atos de exceção praticados pelo Estado brasileiro contra aos que foram perseguidos durante o Regime Militar”, pontuam.
COM A PALAVRA, OS ADVOGADOS BRUNO LUIS TALPAI E VICTOR DE ALMEIDA PESSOA, QUE REPRESENTAM OS TORINI
Em que pese o respeito ao Nobre Desembargador relator e a 6ª Turma do E. Tribunal Regional Federal da 3º Região, o Acórdão prolatado foi em sentido contrário à sólida jurisprudência dos Tribunais Superiores, isto pois, interpretou restritivamente os notórios indícios de tortura, bem como o entendimento de que foram estritamente legais os atos de exceção praticados em face de Antonio Torini, tais quais, a prisão, a incomunicabilidade, o banimento, as investigações ilegais e a cassação de seus direitos políticos.
O Poder Judiciário não pode referendar os atos de exceção praticados pelo Estado brasileiro contra aos que foram perseguidos durante o Regime Militar, seja à luz da Constituição de 1967 – como fundamentou o Relator do Acórdão – tampouco sob a égide da Carta Maior de 1988. Portanto, faz-se necessária a reforma do supramencionado entendimento pelos Tribunais Superiores como garantia de fiel cumprimento à Constituição Federal de 1988 e do fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Como também para estabelecer um parâmetro punitivo e educativo para o que o Estado brasileiro não mais se valha das instituições públicas na prática de atos de intolerância política.