Sancionada em dezembro de 2019, a Lei Anticrime trouxe um novo dispositivo ao sistema penal brasileiro que, aos poucos, está transformando dinheiro desviado dos cofres públicos em verba para investimentos sociais. Ao confessar crimes e firmar acordos de não persecução penal (ANPPs), milhares de investigados têm evitado se sentar no banco dos réus com o pagamento de multas, que viram recurso para financiar essas obras.

De 20 de janeiro do ano passado, quando o primeiro acordo foi celebrado, até o último dia 26, apenas no Estado de São Paulo promotores e investigados firmaram 9.856 acordos de não persecução, resultando no pagamento aos cofres públicos de R$ 76,4 milhões.

O Hospital Menino Jesus, na Bela Vista, centro de São Paulo, é uma das obras beneficiadas por esse novo instrumento. Referência no atendimento de casos de alta complexidade para pacientes de até 17 anos, o local está passando por reformas para melhorar as acomodações de mães ou responsáveis que precisam acompanhar as crianças.

Até agora, ali, mães de bebês menores de um ano internados, vindas do interior, não tinham instalações adequadas para uma estadia prolongada. Com a reforma, a unidade terá um vestiário para acompanhantes, além de outro para funcionários, em um conjunto de investimentos que totalizará R$ 1,6 milhão. A reforma ainda vai incluir alas de enfermaria e o pronto-socorro.

O dinheiro para a obra começou a ser viabilizado oito anos atrás, quando um empresário do setor de transportes decidiu oferecer propina para fiscais da Prefeitura e, em troca, pagar menos impostos. O caso foi uma descoberta lateral do esquema da Máfia do ISS, um grupo de servidores da Secretaria Municipal da Fazenda que, durante a gestão Gilberto Kassab (PSD), entre 2008 e 2012, desviou cerca de R$ 500 milhões, em valores da época, da Prefeitura, segundo o Ministério Público.

O empresário foi investigado e seria denunciado à Justiça por corrupção. Mas, com a entrada em vigor das novas mudanças, os promotores propuseram o acordo: confissão em juízo da culpa e pagamento de duas vezes e meia do que foi oferecido de propina e do que deixou de ser pago em impostos. Ele aceitou.

Do total arrecadado com acordos até agora, segundo o MP paulista, a maior parte foi enviada para a compra de respiradores e outros materiais hospitalares, em decisão tomada com o governo diante da pandemia.

O secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, repassou ao MP uma relação de locais que necessitavam de apoio. “É uma lista de UBSs (Unidades Básicas de Saúde) que precisavam de mesas, cadeiras, poltronas para acompanhantes. Repassamos a listagem e vamos aguardando as transferências de recursos”, disse o secretário.

A Prefeitura deve receber, nos próximos meses, R$ 3,4 milhões para adquirir esse mobiliário, a partir de sete acordos assinados pelo MP com donos de construtoras e empresários do ramo imobiliário ligados à máfia descoberta em 2013, cujos termos aguardam homologação da Justiça.

Histórico

O Brasil já tinha modelos de acordos firmados entre investigados e Ministério Público desde os anos 1990. Em 2013, a Lei das Organizações Criminosas potencializou a celebração de acordos, sendo a colaboração premiada um dos instrumentos que tornaram possível, por exemplo, ações da Operação Lava Jato.

A diferença é que os acordos de não persecução penal (e também aqueles ligados a processos civis) consistem em uma forma mais célere para serem fechados. Há certas condições para firmá-los: o investigado não pode responder a processos anteriores e o delito alvo da acusação não pode envolver violência, entre outras exigências (mais informações nesta página).

Os acordos penais precisam passar por homologação do Tribunal de Justiça do Estado. Os civis também têm de passar pelo crivo do Conselho Superior do Ministério Público. Se o acordo é aprovado, o acusado permanece réu primário, uma vez que a denúncia criminal não é formalizada à Justiça. O Estadão procurou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para avaliar a aplicação desses acordos em todo o País, mas não obteve resposta.

“Nos últimos tempos, quando chamamos algum suspeito para obter esclarecimentos, os advogados já nos procuram para firmar acordos, uma posição diferente do que ocorria no passado. Para nós, há o interesse de reverter o dano causado pela corrupção e recuperar os ativos. Para o investigado, há essa vantagem, de evitar o processo penal, que é prolongado”, disse o promotor Roberto Bodini, responsável pelo acordo do Hospital Menino Jesus. No Grupo Especial de Delitos Econômicos (Gedec) do MP paulista, onde Bodini trabalha, a destinação dos recursos vindos do pagamento da multas é definida no próprio termo do acordo assinado pelo investigado. A transferência é da conta do acusado para a da Prefeitura, com notificação ao MP da transação.

Com os recursos de multas pagas por réus, o Gedec já havia conseguido R$ 2 milhões para a construção de um centro de hemodiálise em Dracena, a 634 quilômetros da capital. A Santa Casa do município, de 47 mil habitantes, tinha um centro com 100 vagas, número insuficiente para a demanda, o que fazia com que pacientes viajassem até 70 km a cada dois dias para tratamento em outras cidades antes da obra, que ampliou o total de vagas para 150. O dinheiro foi pago pelo dono de uma construtora que também se valia dos “serviços” da Máfia do ISS.

Em fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes determinou que o Ministério Público não poderia “carimbar” recursos vindos de acordos judiciais, uma vez que caberia à União definir a destinação desses acordos. A decisão ainda terá de ser submetida ao plenário da Corte, mas há dúvidas se ela se aplica aos acordos de não persecução penal ou se é limitada a acordos de delação premiada – a Justiça paulista vem homologando os termos que chegam com a destinação definida de recursos, determinada pelas secretarias de Saúde.

O procurador-geral de Justiça paulista, Mario Sarrubbo, é um “entusiasta” da justiça penal consensual. “É uma tendência em todo o mundo e é uma tendência muito positiva no Brasil”, afirmou. “O acordo é justo e acaba sendo importante, porque conseguimos aplicar a pena que iria demorar dois, três, quatro anos para sair em um processo judicial, com todo custo e todo o desgaste para o sistema de Justiça.”

A Procuradoria orienta os promotores a oferecer acordos com valores próximos daqueles que seriam obtidos com o julgamento de uma denúncia – a vantagem para o acusado é a solução rápida e o fato de se manter réu primário. “Incentivamos os colegas a destinar recursos para o assistencialismo, especialmente neste momento”, disse Sarrubbo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.