30/04/2019 - 11:28
Na safra 2028/2029, dentro de uma década, desembarcarão nos portos chineses 126,1 milhões de toneladas de soja. Neste ciclo futuro, os negócios globais com o grão serão de 196,3 milhões de toneladas, com a China demandando por 64,2% do comércio mundial. O volume de grãos para o país asiático, lá na frente, é maior do que toda a soja brasileira que deve ser colhida nesta safra, prevista em cerca de 120 milhões de toneladas. Os dados são do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda, na sigla em inglês), que acompanha com lupa os passos da guerra comercial com a China, iniciada no fim do ano passado. Nessa disputa, os Estados Unidos pleiteiam uma pauta mais robusta de venda aos chineses, com retaliações de ambos os lados sob a forma de taxas de importação. As tarifas tributárias são a bola da vez, mas a guerra entre os dois países está longe do fim. “Essa guerra comercial, que hoje é por tributos, é como se fosse a primeira camada de uma cebola. Tirando uma vai aparecer outra”, diz o economista Lin Tan, presidente da trading chinesa Hopefull Grain & Oil, em Yanjiao, na província de Hebei, e que pertence ao Hopefull Group, investidor também nos setores de energia, hotéis e imobiliário. No fim do ano passado, Lin Tan esteve em Mato Grosso para uma série de encontros com produtores e lideranças do setor. Para os chineses, ficar de olho no que acontece no Brasil pode significar a sobrevivência de uma parceria comercial imprescindível ao país asiático. Não por acaso, do total a ser importado na safra 2028/2019, a previsão é de que 96,1 milhões de toneladas sejam originadas no Brasil, volume equivalente a 76,2% das compras chinesas.
Para alimentar sua população de 1,39 bilhão de habitantes, a China será por muito tempo dependente e talvez nunca venha a ser autossuficiente em alimentos básicos. O país possui cerca de 120,2 milhões de terras agricultáveis, divididas em aproximadamente 200 milhões de propriedades. Há grandes fazendas produzindo grãos e carnes com alta tecnologia, mas a maior parte delas, cerca de 90%, possuem, em média, um hectare de cultivo.
A disposição para a compra de alimentos está no enriquecimento do país, dono de um Produto Interno Bruto (PIB), estimado em US$ 13,3 trilhões – no Brasil, o PIB do ano passado foi de US$ 1,8 trilhão. Mas, nas décadas anteriores a 1950, mais fortemente, até o fim dos anos 1970, os chineses passavam fome. Foram as reformas estruturantes dos anos 1980 que modernizaram a produção industrial do país, transformando a sua economia. A agroindústria veio junto, mas dependente de importações, principalmente da soja para ração destinada a alimentar aves e suínos. Na década de 1960 a população chinesa consumia, em média, 1,5 mil calorias por dia, ante 2,8 mil dos americanos. Hoje, a média chinesa é de 3,1 mil calorias e a dos americanos, 3,6 mil. Nas últimas quatro décadas, de acordo com o Banco Mundial, o PIB per capita chinês saltou de US$ 195 ao ano para os atuais US$ 8,1 mil.
DINHEIRO Para crescer e atender a sua população, as empresas chinesas investem também na expansão local. O grupo Hopefull, por exemplo, investiu US$ 7,5 milhões somente em armazenagem de grãos. A trading é a terceira maior processadora na China, com capacidade instalada para 10 milhões de toneladas em seus silos. “A China não vai abrir mão de seu progresso”, diz Li Tan. “O que está por trás da guerra comercial é um projeto de governo para as próximas décadas, e que não começou ontem.” De acordo com o executivo são cinco pontos que norteiam as decisões políticas. O primeiro é o projeto Made in China 2025. Trocando em miúdos, o país deve deixar de vender produtos de baixo padrão de qualidade industrial, como roupas e tênis de segunda e terceira linha, e apostar em setores que tiram mercado dos americanos, como o militar, o de eletrônicos e o de precisão. O segundo ponto é a proteção da propriedade intelectual. Os chineses vêm contratando pesquisadores americanos para suas indústrias e não consideram pirataria o que foi desenvolvido previamente fora do país. O terceiro ponto é a obrigação das empresas americanas instaladas no país ter um parceiro local, o que seria uma maneira de captar tecnologia. O quarto ponto é a chamada Nova Rota da Seda, pela qual a China está criando uma outra estrutura logística para vender os seus produtos, que hoje depende dos Estados Unidos. Isso muda a geopolítica do mercado e, claro, desagrada os americanos. O quinto ponto é o velho embate entre o socialismo e o capitalismo e qual o significado disso para os vários países do mundo que fazem comércio com a China.
E o que isso tem a ver com soja plantada no meio-oeste do país presidido por Donald Trump ou no Centro-Oeste do país comandado por Jair Bolsonaro? O fato é que a soja, um grão de origem asiática, tem na China um consumidor secular. Mas a produção não decolou. Hoje, ela é de cerca de 15 milhões de toneladas por safra. A primeira importação chinesa aconteceu em 1996 e não parou mais de crescer, coincidentemente no mesmo ano em que os agricultores americanos e argentinos receberam a permissão para o plantio de soja transgênica. Isso fez a produção global explodir nos Estados Unidos, no Brasil e também na Argentina. Na safra 2018/2019 a previsão global é de 360,9 milhões de toneladas, das quais 302,6 milhões devem vir desses países.
Anderson Galvão, da consultoria Céleres, diz que no mundo atual não há nenhuma contestação de que a China continuará sendo um importador líquido de alimentos. Guardando as proporções, essa demanda acontece da mesma magnitude do que foi o Japão nas décadas de 1970 e 1980, um país de 120 milhões de habitantes, mas que bancou boa parte da abertura do Cerrado brasileiro com suas empresas atuando no País. “É preciso olhar para a China dentro de um processo”, afirma Galvão. “A China não quer apenas a produção, ela trabalha para estar na cadeia de suprimentos e isso muda a perspectiva no médio e longo prazo.” Não por acaso, os chineses compraram empresas de ponta em seus setores de atuação, como a de agroquímicos Syngenta e a de sementes Nidera.
No curto prazo, os americanos devem aumentar suas vendas em US$ 30 bilhões, não apenas com a soja, mas também com carnes e lácteos. Mas, para o médio e longo prazo, a China precisa apostar nas relações com o Brasil, embora possa ir em busca de outras saídas. “A posição diplomática brasileira tem sido frágil hoje”, diz Galvão. “Não é aconselhável, como fez o presidente Bolsonaro, ter desavenças como esse governo.” Ele se refere a ataques feitos por Bolsonaro, como ocorreu na campanha presidencial, quando declarou que a “China não está comprando no Brasil, está comprando o Brasil”. Nesse contexto, a China, que tem colocado suas fichas no País, no longo prazo pode começar a enxergar saídas que hoje não existem. Entre elas o desenvolvimento de parcerias com a Rússia, com os países da África e do sudeste asiático para produzir alimentos. “Nós somos míopes em acreditar que somente o Brasil pode fornecer grãos para a China”, diz Galvão. “No futuro essa pode não ser uma verdade, com a China tendo ainda mais poder de barganha.”