30/12/2020 - 13:48
Documentos obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo mostram a participação do Brasil nas negociações que levaram à paz em Moçambique e o uso pelas Nações Unidas do acordo de Chapultepec, que encerrou a guerra em El Salvador, como modelo para acabar com o conflito que durava 15 anos. Foi lá – após 27 anos de ausência – que o País voltou a ter tropas em forças de paz: os paraquedistas do general Franklimberg de Freitas.
Os traços dessa história começam com uma carta de Joaquim Chissano, presidente de Moçambique. Escrita no Rio, em 12 de junho de 1992, tinha duas páginas. Era endereçada ao secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali. “A delegação do governo de Moçambique e a delegação da Renamo (a guerrilha rebelde), presentemente reunidas em Roma, concordaram na necessidade de envolver desde já a Organização das Nações Unidas como observadora nas negociações de paz em Moçambique.”
O documento pedia o envio “o quanto mais cedo possível” de uma delegação da ONU à Itália e Chissano se colocava à disposição do secretário. Ghali repassou o pedido ao subsecretário-geral James Jonah, que designou Horário Boneo, especialista da ONU em eleições. Mas ele precisava de um conselheiro militar.
A presença de Chissano no Rio não era coincidência. Havia a avaliação no Itamaraty, e no Estado-Maior das Forças Armadas, de que, superada a Guerra Fria, a diplomacia brasileira devia assumir um papel mais atuante na nova ordem mundial. A presença em missões de paz da ONU – especialmente em países com os quais os Brasil tivesse afinidade, como as nações de língua portuguesa ou da América Latina – era parte da estratégia.
Na época, o coronel brasileiro Romeu Antonio Ferreira estava em El Salvador, na missão de paz da ONU (Onusal). Ele escreveu em relatório: “Pode-se concluir que a participação do Brasil em missões de paz da ONU é de fundamental importância pelas razões básicas: aumentar a credibilidade junto à ONU, tendo em vista assuntos como a participação no Conselho de Segurança, a solução do problema da Antártida, a questão da Amazônia, as relações comerciais etc.”
Pedido
Após designar Boneo, Jonah, por meio de seu Departamento Político, procurou a delegação brasileira na ONU com um pedido. Queria que o País indicasse um militar que estivesse em Angola ou em El Salvador para a missão secreta em Roma.
O brigadeiro Murillo Santos, conselheiro militar da delegação brasileira, enviou dois documentos ao Estado-Maior das Forças Armadas informando sobre o pedido. No segundo, de 24 de junho de 1992, o brigadeiro afirmou que o secretariado da ONU “expressou seu desejo” de que o coronel Romeu fosse enviado a Roma. “A missão deve durar algumas semanas, e o oficial deverá usar trajes civis e partir para Roma tão breve quanto possível.”
Romeu foi à Itália sem ser desligado da Onusal. Ali recebeu orientação de informar o subsecretário-geral sobre os desdobramentos da negociação. Debaixo do braço, levava os documentos do Acordo de Chapultepec, que acabou com o conflito em El Salvador, que ele e a ONU acreditavam poder servir de modelo para a paz em Moçambique. É o que mostra um documento confidencial de 29 de julho de 1992.
Enviado ao subsecretário-geral Jonah, nele Boneo e Romeu relatam o encontro entre os presidentes Chissano e Robert Mugabe (Zimbábue) e o líder da Renamo, Afonso Dhlakama. “Nós providenciamos informações adicionais sobre o cessar-fogo nos acordos de El Salvador.”
Romeu já carregava uma cópia do material e a ONU queria fornecer outras para serem entregues às partes.
O coronel teve sua presença em Roma prorrogada até que as partes assinaram a declaração conjunta de 7 de agosto, na qual se comprometeram a firmar o tratado de paz em 1.º de outubro de 1992.
Romeu voltou a El Salvador. “Queriam que eu fosse para Moçambique, mas não fui.”
Logo após o acordo, a ONU mandou os capacetes azuis a Moçambique. Deixou em 1993 a Onumoz, a força de paz no país, sob o comando do general brasileiro Lélio Gonçalves Rodrigues da Silva. Um ano depois, o contingente de tropas brasileiras cruzou o mar para atuar com capacete azul. O Brasil fazia então parte do Conselho de Segurança da ONU e fora convidado a enviar tropas em 1993. A medida contava com o apoio do chanceler Celso Amorim, mas, mesmo assim, a autorização do Congresso só saiu no ano seguinte.
A tropa chegou em 1994 e foi ocupar a base em Mocuba, no centro da província da Zambézia, antiga área sob controle da Renamo, que continuava sem nenhum capacete azul da ONU.
“Como nossa tropa era mecanizada e blindada e composta por paraquedistas, só profissionais, o comandante regional central, um general italiano (Silvio Mazzaroli), falou: ‘Vocês vão para lá’. E nos colocou no meio da província”, contou o general Franklimberg de Freitas.
Na época, ele era major e comandava o contingente brasileiro. Eram 170 homens da Brigada Paraquedista, todos voluntários. Ao todo, os soldados brasileiros recolheram 6 mil armas e 6 toneladas de explosivos. A tropa brasileira partiu no fim do ano. Quase ao mesmo tempo, outro contingente do país chegava do outro lado da África. Eram os homens da Unavem 3, a terceira tentativa da ONU de obter a paz em Angola.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.